26/04/2020

Jeca Pila

Jeca Pila, logo se vê, não é um apelido qualquer. Não, senhoras e senhores. Jeca Pila era uma mistura de interior brasileiro afixado no estado do Rio Grande do Sul. Não que o estado mais sulista não tenha interiores, pelo contrário, possui mais do que os vizinhos, mas apercebe-se o choque cultural decorrente entre um e outro, compreende?

Pois bem, Jeca Pila era natural do município de Curitibanos, em Santa Catarina. Apesar do sugestionável nome em referência à capital paranaense, este terceiro estado citado fica de fora de nossa história. Curitibanos ficava ao centro das terras catarinenses e a cidade em questão não ultrapassava os 40 mil habitantes. Um deles, Jeca Pila, lobisomen da família ao ser o sétimo de um total de 13 irmãos, foi parar em terras longínquas através da força da labuta. Pegador na enxada desde cedo, logo evoluiu de ferramentas e trabalhava com consertos em geral. Martelou e serrou de tudo, menos os dedos, os quais conservava cinco em cada mão, apesar da coloração escura de suas palmas e dedos, o que lhe conferia vergonha para cumprimentar figuras mais ilustres, inclusive os próprios engenheiros-chefes da companhia.

"Não adianta lavar que isso ficou de herança dos sete anos em que trabalhei com o couro." E era verdade. Apesar da sua inquestionável versão da história, Jeca Pila mantinha a verguenza de deparar-se com os honráveis ocupantes da câmara dos vereadores, atendentes do comércio e do despacho dos correios e, reza a lenda, inclusive constrangido de receber encomendas dos vestidos de azul e amarelo. "Correio!" e lá aparecia nosso herói cabisbaixo querendo o mínimo de reconhecimento possível. O nome exótico aqui preservado também não ajudava. Não, vamos difamar o nome do sujeito, sim, que os correios todos conheciam muito bem: Juberlan Aquiles. Jeca Pila para quem ia tratando de conhecer.

Juber... Jeca Pila, melhor dizendo, conheceu os mais diversos estados brasileiros, fato que muito lhe orgulhava, diferente das mãos enegrecidas pelo couro. Fumava a palha e contava das aventuras pelas terras de Alagoas, Maranhão, Rondônia e Goiás, estado que para mulher bonita jamais viu igual, frisava. Minas Gerais chegava perto, mas ele queria mesmo era ter casado com uma goiana chamada Carla, estudante da capital Goiânia que ele conheceu em festa bem quista na cidade grande.  Às vezes suspirava a lembrar dela. Jeca não tinha Pila nem oportunidade de ficar por lá após as viagens feitas na empresa de fretes e mão de auxílio para construções. Matando esses coelhos em paulada só, Jeca Pila aprendeu diversos sotaques do território nacional brasileiro. Carla, moça simples de família humilde, com traços índios dos antepassados da mãe, que moravam de Tocantins para riba, rumo à preservação cada vez menos preservada. Nisso, além da saudade da Carla o Jeca Pila suspirava pela devastação da Amazônia. "Tristeza que até hoje me abate", falava cuspindo a palha.

Com essa fama de Jeca pelas origens no interior, o apelido circundou por algumas cidades e em outras passava batido. Sim, por haver a concorrência de muitos outros Jecas. Perdia a essência e a excentricidade. Como resolveu estacionar sua vida em casamento em Santa Maria, Jeca Pila ao mesmo tempo cravou no mármore dos apelidos que seria Jeca Pila hasta el final dessa passagem. A moça era amiga de sua pretendente, mas como a primeira não quis, Jeca Pila foi na segunda opção. Ou terceira, se contarmos a inesquecível goiana Carla.

Quis a ironia de porco destino que a santa-mariense devota fosse outra Carla, de modo que confusão de nome não haveria para o nostálgico Jeca Pila, homem de confusões mentais naturalmente. Poderia deixar a imaginação divagar ao passado sem receio de se desentender com a Carla gaúcha por invocar memórias latentes da inesquecível. Ligado no futebol que ouvia com o pai e os irmãos desde os radinhos em Curitibanos, Santa Catarina, a vitória pessoal da Carla goiana fazia com que Jeca Pila relembrasse como o Goiás virou pedra na chuteira do seu Grêmio durante muitos anos, até eliminação no Olímpico acontecendo em Copa Sul-Americana em que o Esmeraldino do Serra Dourada acabou vice-campeão para o Independiente da Argentina. "E os malditos quase tiraram o Grêmio da Copa Libertadores seguinte", resmungava talhando uma madeira, ouvido por Adão e Jaime, seus amigos próximos.

Apesar do futebol e do Grêmio, sentindo-se em casa em Santa Maria, reduto de muitos tricolores, as paixões de Jeca Pila eram carros e, ele, é claro, o dinheiro. Jeca Pila não ganhou esse apelido por acaso, meus amigos. Ainda adolescente quando foi morar durante duas invernadas em Novo Hamburgo, na região metropolitana de Porto Alegre, o frio que passava com pouca roupa e o sopão que não dava conta de aquecê-lo o faziam reverberar em discursos empolgados sobre como seria quando tivesse a grana necessária. A pensão tinha que aguentar Jeca falar dos pilas que não tinha do amanhecer em café da manhã gelado até o esfriar do sopão. Não satisfeito, até o último apagar a luz, ainda estava Jeca - que ganhou a alcunha Pila nessa época - a tagarelar aos quatro ventos sobre sua futura travessia de milionário em outros pagos. Nem a Carla goiana podia competir com o poderio financeiro que emanava naqueles sonhos rechonchudos.

Jeca Pila nas caronas e traseiras de caminhão a incomodar motoristas, passageiros, colegas de trabalho e incluso os fretes em discursos do que compraria caso evoluísse da condição de ser o mero Jeca Pila, pau para toda obra. Não convencia muitos ouvintes, porque logo se via sua paixão desvairada por carros se sobressair à segurança que um imóvel poderia dar para uma Carla ou outra.

Jeca Pila demorou a ter um carro para colocar na garagem apertada e improvisada na casa que comprou com Carla, pedagoga auxiliada pelos familiares, que viam em Jeca mais um lunático do que um bom partido. "Ao menos Aquiles é um sobrenome bonito para Carla", alegava a mãe. "Gosto de falar com ele sobre carros", comentava o sogro do Juberlan. Mas enquanto o sogrão, melhor equipado, tinha um Corolla na garagem, nosso Jeca Pila tinha que se contentar com sua mais nova aquisição: um Monza do ano de 1994. "O ano do tetra, como bem me lembro", recordava com os fieis ouvintes Adão e Jaime, parte do cenário da narrativa, apenas comprovando que Jeca Pila possuía, sim, amigos capazes de suportá-lo por um bom período de décadas.

Mesmo desempregado da estatal em que era operário na virada do milênio, na passagem para os anos 2000, por conta de decisões políticas e cortes provocados por governo de direita, Juberlan jamais conseguiu enxergar diferença entre eles e alegava enquanto descascava alguma vergamota no alto inverno: "é para frente que se anda". E nisso, Jeca Pila, que precisou se arrumar em qualquer bico de serviço braçal, como começara a vida de trabalhador lá na infância dos anos 1980, precisou ser um santo com a Carla e sua família, cuidando até para a urina não errar o alvo a cada manhã. Se aliviava que trocar o nome foi enrosco que nunca ocorreu, mas isso já explicamos o porquê.

Jeca Pila reservava parte do estreito salário para se dedicar à pequena fé (fézinha ou fezinha, ambas ruins de escrita, né?). E jogou na loteria ano após ano, desde a adolescência de primeiros rendimentos. Melhor do que aplicar numa bolsa, numa poupança - ou imóvel, que os caroneiros lhe diziam e ele não dava bola - Juberlan tentou mensalmente acertar seis, cinco ou mesmo quatro números que lhe rendessem uma grana não antes vista. Mas ela continuava invisível, existente somente nos seus ideais capitalistas de sonhador. "Loteria mesmo foi eu ter achado outra Carla na minha vidinha", se contentava muitas vezes quando comia o almoço preparado pela caprichosa Carla, comia tanto que ficava triste, como direciona o ditado.

Entrou de vez para o mundo tecnológico quando aplicativos de conversa, em que além do Adão e do Jaime, companheiros da estatal que continuaram conectados na vida do herói do sub-mundo interiorano, conheceu muitas outras pessoas e começou a multiplicar contatos. Perdeu dinheiro em jogo de pirâmide e não quis mais. Descobriu brechós de coisas que caíram de caminhão, não ligando se quando ele trabalhava em caminhões muitas vezes tiveram a carga saqueada e o trabalho de dias era igual a voltar para casa sem tostão no bolso. Aproveitou outras vantagens que a internet, mesmo sob o sol e transparente e cristalina oferecia, longe da caduquice que certa vez ele ouviu falar de deepweb. "Jipe pra mim é carro. Ah, se eu ganhasse na loteria..."

Teve um casal de filhos com Carla, primeiro o menino Gustavo e depois a menina Patrícia. "Nomes dignos para eles, diferentes do meu, Juberlan, que isso até ofensa é, às vezes penso, embora ninguém possa me ofender que perco as estrideiras", confessava, em rara ida ao bar, para os santificados Jaime e Adão, para variar a ordem dos águas de poço. Lembrando que ele não podia nem mijar fora do vaso para não perder a bocada com a Carla e a família. Se bem que a situação dos filhos, com apenas dois anos de diferença cada um, com o casamento começando a comemorar bodas disso e daquilo, tudo isso assentava a possibilidade dele dedicar um cadin do salário para outras missões que não lotéricas. "Comandante, mais um milho gelado aos pintos" e bebia menos preocupado.

Preocupação veio quando conseguiu adquirir um aparelho de HD para a televisão da sala, mas Carla garantiu que era por conta dela e da família. Jeca Pila apenas deu de ombros e se afundava no sofá enquanto Carla procurava algo de decoração de interiores ou casas em árvores e beira de lagos nos Estados Unidos, coisas que eles apenas namorariam no cruel ramo da imaginação. Além do mais, ele gostava mesmo era da brecha no controle remoto para procurar por carros conversíveis, aros, calotas, modelos clássicos e "nada de rebaixados, que isso não é coisa que se faça nos coitados", quase chorava de desolação quando os via. "Vontade de furar os pneus desses maloqueiros todos."

Com um aparelho a mais, o de HD na televisão da sala, para se preocupar, com os filhos matriculados na escola para mais um ano, o Monza disputando espaço com os vasos de planta que Carla gostava de conservar no apertado pátio que servia de garagem, apanhando as filhas da fotossíntese mais dióxido de carbono e menos sol do que deveriam, com o celular já parcialmente rachado com ainda duas parcelas para pagar, o Jeca Pila nunca esqueceu do dia 26 de junho, quando finalmente, após todos aqueles anos, resolveu ligar para política pela primeira vez na vida, após anos querendo andar somente para frente, nadando quaisquer que fosse a maré.

"Carla, proteja as crianças, ligue para seus pais, certifique-se, mulher, que eles estejam bem..."
"Mas desgraça, Jejê, o que está havendo? Que bicho que te mordeu?"
"Os comunistas, mulher
... eles querem tomar nossas coisas..."

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