02/07/2025

Calcutá 71

Segundo filme assistido de Mrinal Sen, Calcutá 71 foi lançado no ano seguinte ao nome, ou seja, 1972. O longa de mais de duas horas inicia como uma sequência do final de Entrevista (Interview), com um tribunal que julga o caso do personagem principal, Ranjit Mallick, que destruiu a fachada de vidro, a vitrine de uma loja de roupas, quando se vingava do terno que o manequim usava e ele não possuía em mãos para realizar a devida entrevista, derradeira para os rumos de sua acanhada vida.

O manequim estava convocado ao júri como vítima, testemunha da ira do revoltado Mallick, julgado entre as barras de ferro de uma ridícula jaula. O filme, na verdade, não se foca dessa vez nas peripécias do rapaz. Ele desenvolve um panorama da vida na Índia, em que a pobreza, a miséria e as dificuldades de sair delas são o epicentro da trama. Ao longo de décadas e mais décadas uma família ilustra a desgraça da estada indiana, em que se pode ressignificar inclusive a chuva feroz que muitos atribuem ao aclamado filme Parasita (2019).

A família de indianos sofre com a desproteção em uma noite chuvosa. As telhas não dão conta, a água infiltra pelo cômodo onde todos os familiares tentam dormir, uns ainda aconchegados, outros em vão na luta contra a força aquática. Os guarda-chuvas também não suportam a pressão da água sobre suas cabeças. A única solução naquela periferia, uma espécie de favela com pequenas casas conjuntas, era abandonar a residência. Assim a família de pai, mãe e filhos junta poucos pertences, o cachorro, e partem para tentar alcançar um local seguro. Lá, se defrontam com várias pessoas na mesma situação. Abandonaram suas casas e se reuniram em tentativa de abrigo da devastadora tempestade. O pai era o mais conformado, mas também o mais surpreso: "quanta gente!", é o que se resume a dizer.

Na ilustração da passagem do tempo, o filme avança décadas, o que postula a dúvida se a saída da ocupação britânica realmente libertou os indianos. Se as agruras da vida permaneceram sobre outras formas de dominação, seja pelo capitalismo tardio, na tentativa de imitar ocidentais, ou mesmo na invasão desses ao lograrem suas multinacionais que comandam, exploram recursos, trabalhadores e espaços fisicos dos indianos. A miséria de uma família que já não contava com o pai de família é postada em um dos capítulos em que um parente distante os visita. Ele viajou de trem de Nova Déli para Calcutá, a cidade escolhida maior para trama. O parente se surpreende com a desgraça que assola os conhecidos, permanecendo como espectador que pouco tinha a se meter e a contribuir durante sua curta estadia em Calcutá. Briga entre vizinhas, entre a mesma família, desentendimento digno de recordar novelas brasileiras, tudo na gravação de orçamento simples feita no alvorecer dos anos 1970. Na hora que o básico falta, qualquer boca a mais a ser alimentada, ou cama a ser improvisada, pesa e vira motivo para desavença.

A impressão desse filme é de uma espécie de Cinema Novo, como o proposto por Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos no Brasil, ao ritmo dos bengalis. A extrema pobreza, a terra inexplorada pelos nativos, assim improdutiva a seus consumos, o desespero que se sobressai a quaisquer possíveis luxos ou escolhas. Se destaca no capítulo da miséria familiar a informação que corria sobre pessoas que lutavam para ter uma única refeição, mendigos, pedintes que morriam de fome a cada dia e, principalmente, aqueles que, ausentes da possibilidade de comer a simplicidade do arroz, se contentavam em beber a água que havia fervido o arroz. Beber a água do arroz, para muitos, era a única refeição. Quantos milhões de indianos desprotegidos de chuvas, desalimentados do sustento básico?

Seguindo a saga do arroz, um menino sai para tentar a sorte entre cidades com um único saco de suprimento: um saco de arroz. Ele era contrabandista do estimado produto. Junto a outros meninos, viajava de trem para transportar a mercadoria. A polícia estava de vigília e prometia a apreensão do contrabando e dos jovens obrigados a trabalhar como única maneira de driblar a fome. Algo visto em transformações sociais que lembram também os entregadores que transportam marmitas, lanches a grandes distâncias, mas ao mesmo tempo são impedidos de comer. Os "contrabandistas", como chamados pela polícia, se amontoam em vagão com adultos, são desamparados pelas leis, por elas apenas perseguidos. Convivem com adultos, provocam e apanham de adultos, vivem à margem de entrar sem pagar passagem e tentar fugir pela estrada dos trilhos, mesmo que os salvadores trens também possam servir de algozes, ao tentar cortar distância entre vagões enquanto os mesmos estão em movimento: um desequilíbrio pode ser fatal. É a vida de caminhar sobre brasas, sobre lâminas de facas, fazer malabarismo com canivetes para sobreviver; um dia a mão escapa.

Continuação da saga indiana nas lentes, na direção de Mrinal Sen, que dessa vez não assina o roteiro, a cargo de Samaresh Basu, Manik Bandopadhaya e outros, Calcutá 71 é o retrato da época setentista, mas com advertência da frase que encerra/abre cada capítulo, em imagens do filme trazidas abaixo. 

A nota final de Calcutá 71 repete Entrevista:

⭐⭐⭐⭐⭐





Interview (1970)

Filme da Índia, Interview é uma produção muito interessante. Traz imagens da época, de como era uma grande cidade indiana, no caso Calcutá. O personagem principal é um ator de verdade, o jovem adulto Ranjit Mallick. Ele vive com a mãe e com a irmã. O filme consiste na preparação de Mallick para a entrevista mais importante de sua vida, quando um tio lhe garantiu uma oportunidade de emprego. Tendo experiência com jornais, o jovem considera que a oportunidade estava no papo e que a entrevista seria apenas mera formalidade.

Em preto e branco, o filme lembra outros clássicos da época, produzidos, por exemplo, em França e Itália, os maiores vencedores de Oscar estrangeiros e de demais festivais na época. A direção e a assinatura de roteiro ficam a cargo de Mrinal Sen, diretor bengali que esteve vivo até recentemente, com sua morte ocorrida aos 95 anos.

Ao longo do dia, Ranjit Mallick passa por muitas peripécias, tendo em conta de que a missão que parecia simples, torna-se complexa. Desde atividades simples como fazer a barba e arrumar o cabelo até procurar seus amigos para conseguir terno e sapatos adequados, a principal tramoia do filme. A crítica social final é deveras válida, sobre como a sociedade capitalista, ainda mais no capitalismo tardio indiano, em meio a engatinhar pós superar a sugativa ocupação britânica, levava em conta a aparência acima das qualificações. A dificuldade para um jovem sair da vida extremamente simples de viver com a família em busca de um emprego em uma considerada importante multinacional - no começo do filme, o tio de Mallick afirma que os investimentos vinham da Escócia - também levantando a questão de até que ponto havia superação do domínio britânico.

O fluxo das vias, o trânsito desorganizado, os becos e pequenas ruas onde milhares de pessoas vivem, os bondes e os barbeiros abarrotados do vai e vem diário. A busca pela aparência correta, por um bom nó de gravata, por um terno sob medida - visto que o do pai de Mallick não lhe servia, o pai tinha muita pança e sobravam as calças.

Mallick se envolve na denúncia de um pequeno assaltante em um bonde e acompanha as testemunhas até a delegacia. Nisso precisa registrar rapidamente a queixa e ter tempo de realizar a entrevista na pontualidade das três da tarde. O terno torna-se o grande problema, pois o aspirante ao emprego esqueceu-o no vagão. Como recuperar o tecido perdido? Telefonar para quem? Quem poderá lhe socorrer?

Em instantes no filme, nas técnicas também ensaiadas no cinema europeu, Mallick rompe a parede, como é dita a expressão, e conversa com o público. São momentos interessantes de críticas sociais e questões suscitadas para audiência, convocada a participar. É o primeiro de uma série de alguns filmes recuperados de Mrinal Sen para assistir nos próximos dias. Sem promessas, novas críticas podem ser apresentadas na desbravação do cinema do agora país mais populoso do mundo, ao recentemente superar a China. 

Nota final para o filme Entrevista, dos bengalis:

⭐⭐⭐⭐⭐