Segundo filme assistido de Mrinal Sen, Calcutá 71 foi lançado no ano seguinte ao nome, ou seja, 1972. O longa de mais de duas horas inicia como uma sequência do final de Entrevista (Interview), com um tribunal que julga o caso do personagem principal, Ranjit Mallick, que destruiu a fachada de vidro, a vitrine de uma loja de roupas, quando se vingava do terno que o manequim usava e ele não possuía em mãos para realizar a devida entrevista, derradeira para os rumos de sua acanhada vida.
O manequim estava convocado ao júri como vítima, testemunha da ira do revoltado Mallick, julgado entre as barras de ferro de uma ridícula jaula. O filme, na verdade, não se foca dessa vez nas peripécias do rapaz. Ele desenvolve um panorama da vida na Índia, em que a pobreza, a miséria e as dificuldades de sair delas são o epicentro da trama. Ao longo de décadas e mais décadas uma família ilustra a desgraça da estada indiana, em que se pode ressignificar inclusive a chuva feroz que muitos atribuem ao aclamado filme Parasita (2019).
A família de indianos sofre com a desproteção em uma noite chuvosa. As telhas não dão conta, a água infiltra pelo cômodo onde todos os familiares tentam dormir, uns ainda aconchegados, outros em vão na luta contra a força aquática. Os guarda-chuvas também não suportam a pressão da água sobre suas cabeças. A única solução naquela periferia, uma espécie de favela com pequenas casas conjuntas, era abandonar a residência. Assim a família de pai, mãe e filhos junta poucos pertences, o cachorro, e partem para tentar alcançar um local seguro. Lá, se defrontam com várias pessoas na mesma situação. Abandonaram suas casas e se reuniram em tentativa de abrigo da devastadora tempestade. O pai era o mais conformado, mas também o mais surpreso: "quanta gente!", é o que se resume a dizer.
Na ilustração da passagem do tempo, o filme avança décadas, o que postula a dúvida se a saída da ocupação britânica realmente libertou os indianos. Se as agruras da vida permaneceram sobre outras formas de dominação, seja pelo capitalismo tardio, na tentativa de imitar ocidentais, ou mesmo na invasão desses ao lograrem suas multinacionais que comandam, exploram recursos, trabalhadores e espaços fisicos dos indianos. A miséria de uma família que já não contava com o pai de família é postada em um dos capítulos em que um parente distante os visita. Ele viajou de trem de Nova Déli para Calcutá, a cidade escolhida maior para trama. O parente se surpreende com a desgraça que assola os conhecidos, permanecendo como espectador que pouco tinha a se meter e a contribuir durante sua curta estadia em Calcutá. Briga entre vizinhas, entre a mesma família, desentendimento digno de recordar novelas brasileiras, tudo na gravação de orçamento simples feita no alvorecer dos anos 1970. Na hora que o básico falta, qualquer boca a mais a ser alimentada, ou cama a ser improvisada, pesa e vira motivo para desavença.
A impressão desse filme é de uma espécie de Cinema Novo, como o proposto por Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos no Brasil, ao ritmo dos bengalis. A extrema pobreza, a terra inexplorada pelos nativos, assim improdutiva a seus consumos, o desespero que se sobressai a quaisquer possíveis luxos ou escolhas. Se destaca no capítulo da miséria familiar a informação que corria sobre pessoas que lutavam para ter uma única refeição, mendigos, pedintes que morriam de fome a cada dia e, principalmente, aqueles que, ausentes da possibilidade de comer a simplicidade do arroz, se contentavam em beber a água que havia fervido o arroz. Beber a água do arroz, para muitos, era a única refeição. Quantos milhões de indianos desprotegidos de chuvas, desalimentados do sustento básico?
Seguindo a saga do arroz, um menino sai para tentar a sorte entre cidades com um único saco de suprimento: um saco de arroz. Ele era contrabandista do estimado produto. Junto a outros meninos, viajava de trem para transportar a mercadoria. A polícia estava de vigília e prometia a apreensão do contrabando e dos jovens obrigados a trabalhar como única maneira de driblar a fome. Algo visto em transformações sociais que lembram também os entregadores que transportam marmitas, lanches a grandes distâncias, mas ao mesmo tempo são impedidos de comer. Os "contrabandistas", como chamados pela polícia, se amontoam em vagão com adultos, são desamparados pelas leis, por elas apenas perseguidos. Convivem com adultos, provocam e apanham de adultos, vivem à margem de entrar sem pagar passagem e tentar fugir pela estrada dos trilhos, mesmo que os salvadores trens também possam servir de algozes, ao tentar cortar distância entre vagões enquanto os mesmos estão em movimento: um desequilíbrio pode ser fatal. É a vida de caminhar sobre brasas, sobre lâminas de facas, fazer malabarismo com canivetes para sobreviver; um dia a mão escapa.
Continuação da saga indiana nas lentes, na direção de Mrinal Sen, que dessa vez não assina o roteiro, a cargo de Samaresh Basu, Manik Bandopadhaya e outros, Calcutá 71 é o retrato da época setentista, mas com advertência da frase que encerra/abre cada capítulo, em imagens do filme trazidas abaixo.
A nota final de Calcutá 71 repete Entrevista:
⭐⭐⭐⭐⭐