Eu, tolo, tinha pavor de reler as coisas e caçava experiências que, de tão carcumidas, nem poderiam se chamar metades.
19/08/2023
11/08/2023
Interbairros
Passou incontáveis vezes por mim, enquanto eu caminhava ou vivia de caronas. Dessa vez, impaciente pelo próximo ônibus correto, me aventurei pelo Interbairros. Estou começando a lecionar em uma escola em bairro distante, na periferia das Três Vendas, bairro que talvez hoje seja o maior na cidade. Ele é fatiado em sub-bairros e linhas de ônibus. Nesse cenário de vários letreiros, corta-se a avenida Fernando Osório. Tudo começou ainda mais cedo, eu que não gosto das manhãs. Pensei que pior do que os ônibus em si são o cheiro deles por fora, entre combustível já processado e aquele cheiro que fica entre latarias e rodas.
Dentro do ônibus, quando ele faz uma curva mais brusca, o cheiro de suor dá também uma guinada da direita para esquerda ou vice-versa, confundindo e desagradando nosso nariz. Ainda não foi dessa vez que ninguém tossiu durante a viagem. Se é que é possível. Duas senhoras conversavam sobre suas famílias. Uma forma de manter vivos aqueles que já se foram. Nas conversas e nas memórias. Uma revelava muita saudade da mãe dela. Após dissecarem o assunto, uma desceu e se despediram.
Outra senhora, mais para o fim da viagem, comenta que à frente há um poste caído. Alarma a todos. Todos olham em polvorosa. Ninguém encontra o poste caído. "Tu que mora aqui perto" - comenta para outra velhinha. "Isso vai te causar um prejuízo."
Antes disso, na passagem pelo Fragata, o ônibus já teria bicado o espelho de um carro, fazendo com que nosso comboio estacionasse em regime de urgência. O motorista desceu rapidamente. Mais estranho mesmo foram se entenderem rapidamente. Talvez a tal bicada no espelho também tenha sido fake news, assunto na aula de Língua Portuguesa na escola.
Da Guabiroba se vê do alto a cidade, em uma das raras elevações. Vejo alguns comércios simples com siglas e imagino algum famoso com aquelas iniciais investindo na Guabiroba. Na avenida Duque de Caxias os taxistas, sem quem lhes dê serviço, conversam em roda de chimarrão, todos eles carecas. Esses dias caminhando passei por dois calvos que conversavam sobre seus carros estacionados em frente. Pensei que de carros entendo quase nada, mas cabelo eu ainda, por ora deste texto, conservo. Também vi um Fusca de calotas exageradas, chamativas. Um outro veículo com adesivo de carros rebaixados na favela. Ainda era Guabiroba neste caso.
Para os fins do Centro, nos fundos do Simões Lopes, vale dizer que as costas do Cefet, mesmo após quase duas décadas sendo IFSul, seguem feias. Outras casas carecem pintura e descascam até não poder mais, até quase casas não poderem mais ser chamadas. No Simões Lopes, a construção mais imponente, fora o reformado museu da viação férrea, por lógico é uma igreja.
Pelos bairros sigo conhecendo minha cidade que se transforma em imóveis que mudam de donos, em donos que mudam de imóveis, em imóveis que são mudados, também formada a cidade por quem nem tem onde morar. Um atendente que me vende uma água com gás porque sem gás não havia, me vende também umas bolachas de doce de leite e afirma que está calor hoje e que o tempo não dá trégua e "haja corpo para resistir a isso". O meu por incrível que pareça tem resistido ao inverno e mesmo aos seus veranillos.
Próximo de minha casa canso de desviar de merdas de cachorro e talvez humanas. E pensar que almejavam lei que puniria quem não limpasse a sujeira proporcionada pelos pets. Bobagem das grandes. Na Câmara de Vereadores os trabalhadores de queixo e nariz em pé. Pelas escolas e abrigos infantis, creches, o vozerio das crianças me deixa alegre, triste e confuso. Quem serão os pais dessas crianças de hoje? Que futuro terão? O que a tecnologia modifica? O que, apesar da tecnologia, se mantém? Cantigas infantis que as pedagogas puxam.
Perto de minha casa, um espelho de uma loja especializada em venda de extintores me deixa mais bonito do que qualquer outro espelho, causando-me boa impressão e desconfiança. E cada vez que chego em casa não sei com quem vou cruzar. Gente me pedindo dinheiro, talvez em prontidão para me roubar, mantenho chave em mãos, vizinhos que reconheço ou não no semblante, carros de auto-escola, cães pernetas, lixo espalhado, lixo sendo recolhido, mais cocôs de cachorro, ferragem aberta, ferragem fechada, cães de raça em coleiras, vagabundos, trabalhadores, fofoqueiros, andarilhos e meus passos de escritor cada vez menos desocupado mas querendo estar, herdeiro que não sou. Herdo uma cidade assim.
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