18/02/2022

Trabalhos Ocasionais de uma Escrava (1973)

Acabo de assistir ao ótimo filme "Trabalhos Ocasionais de uma Escrava", que começa a se destacar logo na escolha do título. Obra do alemão Alexander Kluge, diretor que empregava sua irmã Alexandra Kluge nos papéis principais. E acertadamente. Neste drama de cunho social como não deixaria de ser no cinema alemão de 1973, várias questões atuais são abordadas mesmo aos pés dos 50 anos depois.

A obra começa a abordar o papel da mulher na família. Casada com um marido despreocupado, egocêntrico e frustrado, a Sra. Bronski precisa se desdobrar entre o papel de mãe, logo cuidadora das crianças, e sustentadora financeira da casa, através de um emprego irregular pela sociedade alemã da época: abortista. Ela era uma espécie de enfermeira ou intermediária também para tomar conhecimento dos casos das mulheres necessitadas, repassando os chamados ora para um médico, ora para uma médica. Como qualquer atividade ilegal, ela possui dificuldades para receber o dinheiro. Várias passagens do filme são elucidativas, nas escolhas minuciosas, detalhistas e sensatas dos Kluge.

Um exemplo sobre o pagamento é o médico abortista dizer que a Sra. Bronski receberia nada na ocasião, pois só estava encaminhando pacientes que nem um tostão tinham para ajudar na clínica. Outra questão da ilegalidade são os subornos e as denúncias de irregularidades. Àquela altura a vida da Sra. Bronski já estava fadada ao ilegal, ao rasgo das leis. Imagens fortes como as de uma operação de aborto abrem o filme para ditar o tom da trama desde o começo.

Chama a atenção o aspecto contraditório de que a Sra. Bronski trabalha em/para clínicas clandestinas de aborto mas possui vários filhos, que, boa casa em que o espeto do marido ferreiro seria de pau, são cuidados pela amiga Sylvia, personagem secundária da trama, amiga fiel que acompanha a Sra. Bronski até onde lhe é possível (saberão ou não porquê).

Eis que com o fechamento desse ramo ilegal de abortos, as contas familiares na Alemanha setentista permanecem a chegar e algo precisa ser feito. O Sr. Bronski se emprega em uma indústria para a qual trabalha em sua especialidade: a química. O eixo do filme, que segue destacando o protagonismo ou a ausência de das mulheres na sociedade, migra para a luta sindical, já que a fábrica para onde trabalha o Sr. Bronski vai se mudar da Alemanha para a mão de obra mais barata e periférica de Portugal. Além de abre aspas expandir negócios, é a forma de contornar leis trabalhistas e as pressões sindicais em voga na Alemanha, representadas na luta austera e incessante da combatente Sra. Bronski, visto que seu marido era, conforme relatado, um verdadeiro frouxo.

Acompanhada de Sylvia, Roswitha Bronski busca mobilizar essa luta sindical, procurando ajuda nos meios de comunicação, onde encontra também dificuldades. Tanto do ponto de vista operário para a luta vigente, quanto de comunicação com os galhofeiros jornalistas dos periódicos. Mas ela não desiste de sua marcha e procura alternativas para driblar essa imposição de fechamento de vagas de emprego, o que prejudicaria rudemente sua família. É interessante analisar que a obra perpassa diferentes movimentos sociais, de algo mais puramente feminista ao movimento operário em si, mas sempre com a ênfase do papel possível atribuído à mulher, personagem principal Roswitha Bronski na película.

Nesse emaranhado proposto, a figura das crianças vai se perdendo e a personagem que inicia mãe preocupada logo está de corpo e alma vestindo seu papel de mobilizadora das massas, através da conversa, de reuniões secretas e produção de panfletos, obviamente contestados pelas autoridades fabris.

Uma grande obra naquele agradável e por vezes descontraído clima crítico das Nouvelle Vagues que ditaram o melhor do cinema europeu na década passada, os anos 1960. É a segunda obra que confiro de Alexander Kluge, ao passo que a primeira, Despedida de Ontem (1966) também emprestava protagonismo à sua irmã no papel de uma andarilha perdida entre vidas, identidades e empregos, em meio à clandestinidade, à burocracia, os preconceitos e as dificuldades de impor-se mulher em uma sociedade onde os homens criam, adulteram e regem as leis. Nessa toada, nos sete anos que separam os dois filmes, vemos um Alexander Kluge sem medo de posicionar sindicalmente, com mensagens abertas da causa socialista e anti-patronal.

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