Embora os conhecimentos de História muito nos engrandecem, a nós que buscamos um mundo melhor, observando malditos erros passados e vendo-os se repetir no presente, planejando, infelizmente que eles voltarão a ocorrer no futuro. Porque, apesar dos avanços tecnológicos através dos séculos, a humanidade, por essência, erra em ciclos. Será que aprendemos com os erros? Ou será vontade das classes superiores, dominantes, donas do poderio bélico, das finanças, será vontade dela repetir os passados e garantir a estagnação, o conservadorismo, a manutenção do status-quo. Será isso, sim.
Penso em tantas guerras que formulamos em nome de antepassados. Em judeus e palestinos a degladiar-se pela terra santa. Nos séculos que persistem com os mesmos ou semelhantes ideais, apesar do cada vez mais desparelho poderio de um lado em relação ao outro. O desequilíbrio das balanças. O pesar de um dos lados da gangorra. Em nome de antepassados, sujeitos lunáticos (com perdão aos lunares pelo emprego do termo), lunáticos querem uma volta de um monarquismo, reivindicam as heranças da família Bragança - com o perdão da rima. Uma faixa em protesto bolsonarista pelos centros do país pede para os ministros do STF se ligarem, porque, ali no asfalto, no lado plano - que acredita inclusive em Terra plana - ali não é favela. Depreciam a favela de todas as formas. Retiram seus direitos mais fundamentais, da alimentação e moradia. A cidade nega a favela. Não lhe oferece empregos ou oportunidades. Lá atrás, na vida dos que conseguem se tornar mais velhos (pelos 15, 18 ou 24 anos), lá atrás, para esses favelados não lhes foi oferecido estudo. Assim a banda toca. As feridas abertas e cada vez mais inchadas de uma sociedade desigual. Uma sociedade em que, se as desigualdades foram reduzidas por uma penca de anos, novamente se acentuaram. E chamo a atenção sempre para o agravante: nossa população é crescente. Apesar dos inúmeros fatores-morte a que estamos submetidos, são mais nascimentos do que mortes. As feridas seguem crescendo e inchando. Onde tudo isso irá parar?
O preço da cesta básica consumindo cada vez mais dos parcos salários. Os índices de desemprego no alto. Mesmo o preço dos combustíveis lá no alto, impedindo que muitos trabalhem com entregas, de mercadorias ou passageiros. Acumulam-se pessoas nas favelas e há quem tenha pedido a elas o bom senso de um distanciamento social nos mais elevados índices de Covid - situação vista hoje como passado, embora a pandemia não tenha acabado. Acabou com a vida de quase - ou mais, em números extraoficiais - de 600 mil brasileiros. Praticamente duas cidades de Pelotas. Mais do que uma Caxias do Sul, certamente. Além dos números definitivos (?) como são as mortes, uma infinidade de pessoas com sequelas da maldita doença. Uma infinidade de desamparados por uma economia que tenta controlar números e cifras, mas esquece das pessoas. Sucateia sindicatos, cargos, empregos. Obriga o cidadão a trabalhar no que lhe for possível, geralmente contrariado em serviços terceirizados ou autônomos, ou sub-empregos, com suas incertezas e sub-salários, abaixo da linha do salário mínimo. Cidadãos que convivem nas entrelinhas da pobreza e da miséria, escanteados do centro do asfalto, movidos para o alto dos morros, onde ampliam-se e implantam-se cada vez mais casas simples de um ou dois cômodos, materiais doados ou encontrados, obras que desafiam os solos e os mais complexos projetos de engenharia, mas, a exemplo do povo que as constrói, insistem de ficar em pé. A surpresa, quando caem, quando descem dos morros e barrancos é como a casa improvisada havia se sustentado? Como não havia caído antes? São as feridas cada vez mais abertas, subsequentes, conseguintes e inchadas.
E volta-se para a faixa que ameaça o STF com a promessa de que, ali embaixo, na linha do asfalto - dos crentes ou não da Terra plana e outras abilolagens - eles não são como a favela. Vociferam isso em tom orgulhoso. Se acham grandes e maiores. Peitam as instituições, não conhecem e não toleram limites para suas atrocidades. Enquanto possuem o suficiente para seus carros importados, blindados, para suas fantasias verde e amarelas da roupa para fora, enquanto desmatam terrenos, florestas, tempo e clima do país, enquanto possuem condição de subverter pessoas em seus empregados quase escravizados, para eles está de bom tamanho. Para eles funciona o país. Malditos os sejam. Enquanto escanteiam pessoas para o alto dos movediços morros, enquanto as tratam como dejeto e esgoto. Malditos os sejam.
Com suas fantasias de linhagem, de família Bragança ou não, de traços europeus ou não, de italianos ou alemães ou não, enquanto se acham superiores pela cor da pele, de forma mais ou menos generalizada, mais ou menos dita da boca para fora, enquanto se acham superiores aos demais mestiços desse país, aos indígenas povos originais dessa região continental, de matas e florestas diversas a serem devastadas. Eles se acham superiores por seus emissores de gás carbônico por meio de motores ranger estrangeiros. Se acham superiores pelo prato de comida que conseguem comer aos fins de semana, pelos restaurantes que conseguem frequentar, pelas viagens ao exterior que ainda conseguem fazer, pelos champanhes e pelas festas que consomem. Se acham superiores. Possuem empresas ou ações, possuem empregados, possuem patrimônio, possuem heranças de família Bragança ou não, vindas de outras gerações, de outro século, de outro continente, ou de outro continente investem em bolsas, ações, medidas de um complexo mercado financeiro. Possuem mansões em condomínios fechados com segurança particular, câmeras, heliportos ou simplesmente embarcaram nessa fantasia ainda mais mentirosa para aqueles classe econômica média que supõem-se ricos, como se, financeiramente, não estivessem muito mais próximos de se tornarem os próximos pobres.
Malditas linhagens e heranças e heranças segregadoras, racistas, impositoras, imperiais, histórias que se repetem e não conseguimos mais romper o laço, encontrar as raízes de tamanhos problemas em 500 e poucos anos. Violência que atinge mais a negros, que atinge os territórios indígenas, que devasta faunas e floras, coisas que me devastam desde meus mais profundos interiores da mente. Enquanto isso eles vociferam e ecoa na minha cabeça a mensagem, o vozerio, o griteiro, a imagem do cartaz prometendo medidas contra o Supremo Tribunal Federal porque ali, ali naquele asfalto, naquele mar de construções desde tempos escravistas, de heranças memoriais de um país de abortos e racismos, ali, para eles, fica o recado: ali não é favela.
Um post que vi perdido pela internet apontava que uma cliente pobre sempre admite sobrar fraldas e pergunta para quem ela poderia doá-las. Enquanto isso, uma cliente mais rica, quando sobra fraldas, pergunta para quem ela pode vender. É essa mentalidade. O senso de cada um por si, que a humanidade poderia distinta da sobrevivência dos animais, mas não tem. A humanidade feroz, umbiguista, individualista. Eles que se acostumam a vender tudo, incluso a própria alma. Eles que acostumam-se a caminhar por cima de corpos, embora estejam ao nível "baixo" do asfalto e as demais pessoas é que aglomeram-se no alto, sobre os morros. Eles que enxergam números, saldos, cadernetas, poupanças, preços e não distinguem mais valores. Porque seus antepassados escravistas também não os viam. Porque o racismo e o racismo estrutural os impede de enxergar. Ou, tanto pior, enxergam e nada mudam. E nada fazem pelo bem do outro. Porque estão intrínsecos com seus ideais materialistas, pensando na própria sorte de uma família protegida para dentro das grades de um condomínio de segurança máxima. Como ouvi no documentário A Ponte (2006), sobre a periferia de São Paulo, eles andam de carro blindado, mas uma hora terão que descer. Terão que se defrontar com seus erros e com a realidade. Ou, talvez por outro viés, talvez a favela, a favela de ferida tão inchada, em sub-espaços que já não comportam mais gente, a favela vai invadir, vai ocupar seu lugar pelo asfalto, vai reivindicar o que é dela. Vai buscar pelos espaços que a sociedade para sempre as negou de usufruir. Porque, conforme eu apontei, pode-se ter reduzido a desigualdade por um determinado tempo, mas a sociedade novamente grita em gritos de fome, reclama seu espaço para moradia, requer sua educação, sua saúde básica, sua oportunidade, recobra por um ganha-pão, por um emprego melhor do que o caminho da prostituição ou das drogas.
E tudo isso a humanidade faz sem saber como termina o dia, como termina o mês. Se vítima da fome ou da violência. Se vítima de um sistema que a encarcera de oportunidades, não somente para dentro das prisões com as chaves jogadas fora. O lado mais pobre, onde a corda arrebenta, faz o seu cotidiano com o receio do que será para seus filhos. Jovens, adolescentes que engravidam e têm o parto, que criam filhos não se sabe como é possível. Algumas vítimas de aborto antes das crianças nascerem, outras acumulam funções, sendo mãe e pai ao mesmo tempo, pelos ausentes que puxam fora. Essa sociedade se preocupa cotidianamente como vai terminar o dia, mas também gostaria de garantir algo de vida e oportunidade para seus descendentes. E essa angústia não tem sequer palavra que a traduza, tamanha é. Essa é uma diferença da humanidade em relação aos bichinhos. Ao gato ou ao cachorro que consegue, de barriga alimentada pelo dia, dormir um sono mais tranquilo. Enquanto a nossa luta é incessante e o futuro é difícil de visualizar. Para alguns, como eles próprios relatam, é impossível. Essa é a diferença.
Admiro e invejo os cães e gatos, os deitados sob o conforto de um lar. Porque, mesmo que me encontre em determinado momento dessa maneira, vivo ansioso por um futuro que a mim não pertence. Eu, que tal qual um dos principais provérbios machadianos "não quero deixar de herança para filhos a miséria dessa existência", mesmo eu sob essa condição que poderia me aferroar uma aparente tranquilidade, fico pensando um futuro que poderia ter sido. E não será.
Um futuro que não será para mim e muito menos será para outros excluídos dessa realidade maléfica e de crueldade implacável. Não será para eles e, pelo caminhar trôpego da humanidade, também não será para a ampla maioria de seus infortunados descendentes.
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