08/09/2021

Leonardo Haag e a denúncia

Leonardo Haag estava deitado, dormindo com seu pijama listrado, que consistia em um conjunto de camisola e calças. Como ele julgava correto, dormia sem meias, mas tinha uma touca também listrada para completar o conjunto em questão. Trabalhador brasileiro, ele era do ramo de entregas, ou motoboy, como não gostava de ser chamado. Só precisaria trabalhar na próxima noite, mas estava determinado a aproveitar a noite de sono naquela sexta-feira.

Ele ouviu o som repetitivo da música eletrônica e olhou para o copo d'água que deixava na mesa de cabeceira. A água vibrava conforme as batidas musicais. Leonardo levantou e esfregou os olhos diante do espelho, com um olhar interrogativo de quem ainda não se reconhecia naquele horário. Calçou suas pantufas para não apanhar frio, vestiu um casaco de tom neutro e foi para seu patiozinho para averiguar o que estava acontecendo nas redondezas.

- Devem ser esses malditos jovens baderneiros - falou consigo próprio. A verdade é que Leonardo ainda era bastante jovem também, mas, homem dedicado ao trabalho desde a adolescência, sentia-se um verdadeiro tiozão, como poderia confirmar a hipótese quando retornava à sua terra natal, Barueri, nos feriados ou fins de ano, para confraternizar com os sobrinhos, filhos de sua irmã. Em poucos dias, Leonardo era capaz de estragá-los com as piadas mais obscenas que possam ser imaginadas. - Eles sempre riem hehe - constatava.

Leonardo sabia que, no meio da pandemia de 2020, uma festa naquelas proporções não era correto. Qualquer reunião de pessoas sem máscara o deixava meio agoniado, destemperado com o sistema. - Se as pessoas não podem ir para nossa lancheria curtir uma bóia, essas festinhas aqui no meu bairro também não! - Exclamava consigo.

O paulista pegou um binóculo e foi para rua, tentar avistar algo da movimentação. Percebeu algum movimento de veículos na rua, uns estacionando, outros possivelmente já indo embora. Primeiro, com suas ideias pré-concebidas, pensou tratar-se dos jovens do lava-jato alguns terrenos adiante de sua moradia. Aqueles gostavam de beber alguma vodka e fazer uso de cigarrilhos. Mas Leonardo lembrou que eles não costumavam promover festas assim, com medo de que o terreno fosse desapossado daquela irregularidade em fachada de lavagem de veículos, como era comum no seu bairro. - Não levo minha moto nesses lugares, eles não entendem de cuidar veículo. - Protestava.

Enfim. Leonardo pensou que o correto, até para o bem de seu sono, era desmontar a movimentação que estava acontecendo. Fechou o seu casaco de tom neutro por sobre o pijama, mas, como o casaco estava curto, as listras do pijama ainda estavam para fora, aparecendo diante de sua cintura. Procurou rapidamente suas calças, tateando por sobre os móveis onde poderia tê-la depositado de qualquer jeito. Finalmente sentiu pelo tato e foi colocando por cima da calça de pijama. Manteve as pantufas, pois, em plena noite, não seriam chamativas na ocasião. Com dificuldade para enxergar diante dos fracos postes de luz do bairro, Haag foi avançando de seu portãozinho até as calçadas, na companhia de uma lanterna, notando haver veículos estacionados dos dois lados da rua. Um ou outro cachorro latia de fundo, para complementar o som musical que vinha da determinada casa vizinha.

Tentando se ocultar pelas sombras, sabe-se lá o porquê, Leonardo andava na ponta dos pés, procurando não chamar a atenção. Queria surpreender os meliantes festeiros. Depois de ter sintonizado sua visão àquela rua escura, ele depositou a lanterna no bolso interno de seu pijama, conferindo um volume difícil de ser explicado. Ele apalpou com a certeza da lanterna estar segura naquele pequeno bolso e soltou uma risadinha.

Chegando ao portão de entrada da casa derradeira, Leonardo respirou fundo, com a testa a produzir gotículas de suor. Era um momento decisivo. Ele notou que o portão estava aberto, na segurança e confiança daqueles infratores, e foi adentrando. A música estava a toda, agora com algum pagode que ele quase cantou junto, mas lembrou-se de sua importante missão. Engoliu em seco e prosseguiu. - A hora é agora, amigão - falou para si mesmo.

Ele chegou no pátio de acesso para a piscina e para a área dos fundos, onde estavam as pessoas, curtindo, a princípio sem notar a presença do intruso. Até que tropeçou em uma pedra e quase foi de nariz ao encontro da calçadinha. O tombo não passou despercebido por um primeiro meliante, que olhou coçando a cabeça, sem entender de quem se tratava. Ele avisou sua companheira, que a princípio não entendeu com o som alto da música, mas, quando cara repetiu, ela se deparou com a cena de Leonardo se levantando, sacodindo a poeira e constatou que também não o conhecia. A fofoca foi se espalhando e as pessoas começavam a olhá-lo. Leonardo manteve a frieza e a cabeça no lugar, se é que podemos falar assim. Ele permaneceu com o foco na missão, olhando um por um daqueles rostos que agora o miravam de volta. Com o dedo indicador para que não perdesse as contas, tentou contabilizar um por um dos meliantes.

19, 20, 21, 22, 23...

- Quem é você? - Ecoou o grito de repente, rompendo com o alto som do Guere Guere... Guere Guere.

- Espere um pouco - Ordenou Leonardo, com a mão espalmada, enquanto a outra terminava o serviço. - 28.

Ele continuou olhando atônito para aquela gama de olhares em volta de si. Novamente respirou fundo, engolindo em seco. Começou a recuar, tomando cuidado dessa vez para não tropeçar de volta na mesma pedra. Quem diabos colocaria uma pedra ali, no caminhozinho para estacionar algum carro? Alguns avançaram para tentar se informar sobre o estranho, querendo saber o que ele queria ali. Mas, sabendo do perigo que corria dali em diante, Leonardo desatou a correr. Um disparo com pantufa e tudo.

Sem perder seus calçados Deus sabe como, Leonardo avançou pelas calçadas da vizinhança, agora já despertando e agitando diversos cachorros prisioneiros das grades de ferro. Ele também conseguiu manobrar perfeitamente a chave em seu fiel portãozinho e foi para dentro de casa, se dando conta da ausência do volume em suas calças: havia perdido a lanterna pelo caminho. - Droga, gostava muito daquela lanterna!

Pelo basculante do banheiro, tomou uma posição de guarda e, subindo em um banquinho de madeira para enxergar melhor, ficou atento, com o binóculo diante da face, cuidando alguma movimentação suspeita, se estavam atrás dele. Só relaxou após longos cinco minutos de tocaia. Antes, ele havia rabiscado uma folha de papel com um dado muito importante: 28.

Ainda ofegante pela aventura de corrida e de esperar por uma alguma emboscada, Leonardo finalmente foi para o telefone registrar sua ocorrência.

- Brigada Militar, boa noite.

- Boa noite, policial. Policial, acabo de ver uma cena aterradora! O senhor não vai acreditar, oficial.

- Sim.

- Estou aqui no bairro ainda pertencente ao centro de Pelotas mais precisamente em direção ao bairro Areal compreende?! Gonçalves Chaves a rua. Nesta rua policial uma coisa terrível policial. Eu estava dormindo. Sou trabalhador brasileiro policial necessitando de gozar do descanso entendeu? Eu estava dormindo e fui despertado e... horrível oficial.

- Sim, diga.

- Eu primeiro ouvi para falar ao bem da verdade policial. Ouvi a música acho que era do DJ Blazy. Não que eu conheça e escute essas coisas aí oficial sou um sujeito até bem decente quando tive imposto para pagar sempre paguei entende? Eu ouvi a música o barulho retumbante o alarido jovem compreende? Entendo os fugores da idade policial. Quem é que não dá uns tiros fora entende?

- ...

- Pois então policial para ir direto ao assunto me desloquei até a casa dos meliantes e tomei todas as precauções possíveis policial. Vocês se orgulhariam do ato de bravura e coragem que desempenhei essa noite policial. Eu fui até a casa dos meliantes trajado em condições dignas para não levantar a bola da suspeita. De forma discreta adentrei o recinto e procurei contabilizar quantas pessoas havia no local policial. No local da festa. Deixe-me ver policial. - Pegou a folha de papel em que havia anotado o número. - 28. 28 é o número exato policial. Desculpe policial desculpe me contradizer. Mas é que estava escuro sabe como é? Estava escuro no local da festa e eu não consegui contar com precisão alguns se beijando podiam estar encobertos e se um estava no banheiro policial? Ou se duas pessoas estavam no banheiro ou até pior entende? Não sei se vem ao caso. E alguns eram muito feios. Não tenho preconceitos assim mas ah se pudesse evitá-los. Contei 28 pessoas policial.

- Você gostaria de denunciar uma aglomeração?

- Sim policial. Sim senhor.

- 15 de Novembro?

- Gonçalves Chaves policial em direção ao Areal policial.

- Gonçalves Chaves...

- Penúltima quadra. Agora estão ouvindo pagode. Quando cheguei lá já estavam no pagode. Ouvi algo do Mc Menor e algo talvez do Dilsinho mas acho que não vem ao caso. Não acho que sejam coisas que pessoas direitas fazem entende? Isso é complicado. Tive meus tempos policial. O pai era bom mesmo. Elas vinham atrás. Eu nem precisava enviar solicitação depois. Elas procuravam. Mas sabe como é pandemia é complicado. Eu tenho evitado. Elas ainda me chamam mas a força de vontade quem tem consegue manter certo policial?

- Certo, certo.

- Agi certo policial? Estou salvando pessoas.

- Muito bem.

- No que precisarem policial. Estou a serviço da lei. Já tive meus problemas com outras coisas. Sonegação até o momento não tive. Hoje ainda trabalho no ramo de entregas então não estou devendo o de renda. Mas tive meus tempos. O pai era bom mesmo. A grana entrava. O barulhinho da caixa registradora. Às vezes ainda sonho com isso. Entrava grana mesmo. A coisa fluía. Eram outros tempos. Mas tudo ok policial?

- Tudo sim. Agradeço, senhor.

- Leonardo policial. Pode me chamar de Leonardo. A serviço da lei. Para o que precisarem. Admiro muito sua profissão. Tentei contato com a academia de superiores mas fui logo dispensado. Uma longa história. Acontece que o Crystopher...

- Obrigado mesmo, senhor. Precisamos liberar a linha. Uma viatura está a caminho.

- Às ordens senhor policial. Se precisarem de plantão policial. Sabe como é, me acostumei a dormir tarde, trabalho no ramo das entregas. Um plantão não cairia mal posso ajudar no que for preciso.

- Tudo bem. Desculpa o incômodo, senhor. Tenha boa noite.

- Sim policial. Você também amigão. Oficial. Câmbio e desligo.

- ...

Leonardo foi para cama. Retirou o casaco de tom neutro e as calças que combinavam. Permanecia de pijama listrado em azul e branco. Sentiu falta da lanterna, mas dormiu com o sentimento de dever cumprido para o exercício da cidadania em prol de nossos compatriotas. Teve pesadelo com alguns dos rostos que viu e considerava feios. Além disso, uma música do DJ Grilo o incomodava e não permitiu um sono tranquilo como havia desejado o policial do outro lado da linha.

Na noite seguinte, o soldado que o atendeu pediu demissão do turno.

- Olá policial é daí que estamos precisando de um novo plantonista?

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