19/10/2020

Medo dos Vivos

Tenho dúvidas se já explorei esse tema em tempos anteriores (obviamente), mas me proponho a esmiuçar ao menos um caso e citar outro. Mania feia a minha que desgosto os compromissos e já inicio essas linhas compromissado em relatar conforme informei que farei. O título remete ao segundo caso, mais curto, praticamente apenas a ser certificado, rubricado, ao final de página. Mas tem tudo a ver com a primeira situação, bairro Fragata, o bairro-cidade, na cidade de Pelotas.

Certa feita deixei meu trabalho mais cedo, quando cobria em assessoria de imprensa o clube da Avenida Duque de Caxias, a principal daquelas bandas. Gostava muito de fingir pegar o ônibus que me levaria ao centro, porém do centro necessitaria outro ônibus para casa, na ponta oposta da área urbana, no Areal. Somente eu para topar aquele emprego ingrato a troco de quase nada. Embora tenha-me dado parte do reconhecimento que timidamente desfruto. E também porque eu podia abandoná-lo a hora que quisesse em cada turno, justificado por outros secretos afazeres à chefia, como a desculpa por estudar, que eu tinha aula à noite. E assim saí, creio que em uma manhã ensolarada.

O Farroupilha é reconhecido como o Fantasma, tendo-o como mascote, além de ser o simpático tricolor da cidade. Um time das cores rio-grandenses, verde, vermelho e amarelo, mas que utiliza muito do branco, principalmente em seu segundo uniforme. O primeiro tem predominância verde, até porque os rivais locais são, respectivamente, um vermelho e outro amarelo. Melhor destacar os tons esmeraldas. Mas eu comentava que o Grêmio Atlético Farroupilha é o Fantasma e o apelido é bastante apropriado. O Fantasma pela proximidade entre sua sede na Duque de Caxias, 847, e o cemitério municipal de maior porte, o que contempla a maioria dos corpos e talvez almas da cidade, seus anonimatos e sub-celebridades, que colecionamos sub-celebridades.

Na proximidade com o cemitério, algo daquela manhã me atraiu para, quando circulava pela avenida, no concreto escaldante onde passam transeuntes e bicicletas pela avermelhada ciclofaixa, algo me sugeriu que eu devia dobrar para esquerda e, ao não haver sinal de carros, que ali muitos veículos passam na via, atravessei para a calçada sombria pelo cemitério que agora já se ergue em quarto andar pela quadra (àquela época eram só três).

Entrei pelos elevados portões cinzentos de ferro bem conservado, tamanha sua importância que ali testemunhavam entrar célebres encontros, reencontros e, é claro, o motivo maior, as despedidas. Aquelas arrebatadoras estruturas gradeadas levavam para o interior daquela úlcera e chaga interminável, onde alguns partiam para outros planos e a maioria ficava cabisbaixa a pigarrear e refletir sobre suas próprias existências. "Rômulo era tão jovem", "Ricardo há tanto eu não via", "Selma era tão querida", "não me despedi de Olga" e assim por diante. Pais, filhos, sobrinhos, primos distantes, parentes sem compartilhamento de mesmo sobrenome, amigos afastados, acompanhantes próximos, carregadores de caixões, portadores de discursos, trechos bíblicos, incensos e bitucas de cigarro pela caminhada irreversível.

Me certifiquei que ali nenhum velório ocorria e continuei percorrendo corredores em direção à parte que mais me toca, até porque lá que estão enterrados meus bisavós e demasiadas vezes percorri nos mesmos passos, com meus pés menores acompanhados de mão com meus pais ou em tons secretos de escondida brincadeira que eu meu interior conservava, porque embora achasse o cemitério grandioso e impactante, algo de misterioso e espetacular se acendia em mim com liberação de adrenalina. E assim repetia esses passos, naquele dia bem mais incertos do que certeiros das outras vezes. Tampouco, com a passagem dos anos, me recordo onde ficam os referidos túmulos de meus bisavós e seus parentes diretos, todos muito próximos em ala afastada para um jardim cada vez menos cuidado.

Nunca gostei da ideia de ser posto em uma parede, embora ali deveriam haver sepulcros de maior destaque na cidade e região. Letreiros correspondentes e melhores restauros e conservações. Minha tia-avó recentemente foi alojada nesse novo espaço após uma vida de 80 e poucos anos em mesma casa. Mas segui pelos corredores emparedados rumo aos fundos do referido cemitério São Franscisco de Paula - incluso padroeiro de Pelotas. Nome da principal catedral e também de avenida, na qual eu morava.

Para os fundos do cemitério predominantemente católico, mas também de abrigo protestante e judaico, por exemplo, havia ainda paredes bem menores, que muito se assemelhavam às dos quatro andares somente pelo método de depositar os corpos. Ali para o rumar aos fundos daquelas meio que duas quadras de extensão, ali estavam corpos e seus restos em estruturas verticais de aspectos similares a estantes. As estantes eram revestidas de pinturas esbranquiçadas, dando um tom monótono àquele trecho percorrido a pé.

Ao derradeiro da obra mórbida de natureza humana, estavam os jardins de grama cada vez mais entoada pelo crescer do mato, a escassez de antes primaveris flores. A extensão daquelas lápides até onde minha já deficitária vista (corrigida com 0,25 de grau em cada olho somente quatro anos depois) alcançava, formava um agradável cenário, como me gosta observar as grandes multidões. Por exemplo, em passeatas, estádios de futebol, protestos e, com menos afinco pela menor religiosidade, em procissões pelas graças de alguma santíssima entidade. Mas ali não era a multidão humana viva, pulsante, propriamente viva. Estavam depositados as cravadas pedras e suas inscrições, em que lemos muitas e lembramos poucas ou quase nenhuma, nos chamando atenção algumas mortes injustamente pregadas sobre corpos tão jovens, que nem consciência direito haviam tomado de nosso mundo. Embora algumas lápides de antigos tampouco poderiámos afirmar que viveram com a tomada de consciência. Mas isso é impossível tratar observando somente os túmulos - e mesmo que os abríssemos, nada revelariam, apenas vermes, organismos carcumidos e o revolver da terra.

Naquela espetacular visão, com a câmera em mãos, que eu havia já sacado da mochila da Nike que eu portava, comecei a percorrer o corredor principal entre tantos imóveis de pretensão eternizada enquanto nossa civilização assim durar. Os padrões de construções são distintos por poder orçamentário, condições financeiras, escolhas de cores, a gosto dos falecidos ou de opinião dos organizadores dos velórios e sepultamentos. Há túmulos violados, há pedras desgastadas, há vandalismo e também efeitos naturais de decomposição, atingindo abaixo e acima da terra.

Percorri alguns metros e fui parado por um dos trabalhadores daquela manhã, um dos cortadores de grama. Me chamou a atenção. Primeiro ele sinalizava ainda ao longe, depois resolvi me aproximar para romper o ruído de seus colegas cortadores de grama. Ele que já mostrava certa apreensão com minha presença, estava aturdido enquanto disse: "menino, essa câmera em mãos, que perigo! Aqui nessa região os craqueiros (usuários de crack), os drogados, te pegam com isso e te roubam quando não coisa pior", exclamava o homem. Se não com essas, com semelhantes palavras.

Direto e preocupado que ele foi, tomei seu depoimento como experiente naquele trabalho e demonstrei meu entendimento para me retirar. Ele baixou a tala protetora para o rosto, que agora está em moda novamente em função da pandemia do novo coronavírus. Religou seu aparelho e voltou a baixar o mato que crescia e impedia visões de maior privilégio aos transeuntes. Eu contornei o cemitério em caminho oposto ao de entrada, com algumas fotos da trajetória em registro do cartão de memória. Dos jardins - onde se escondiam dia ou noite, os "craqueiros" mencionados, ou usuários de outras drogas, voltei para os labirintos brancos das estantes seladas de caixões e terminei pelos andares verdes onde residem a maioria dos já não aqui residentes. As pesadas e cadeadas à noite portas de ferro são o limite.

Alguns guardas fazem as proteções pela área da frente, mas para os rumos dos extensos jardins já não há limites para os crimes ainda praticados pelos vivos - e talvez, pelas epidemias de drogas, cada vez mais praticados. O desespero pelas substâncias, a perda da noção, o distúrbio final dos conceitos de certo e errado. A necessidade daqueles organismos em acelerar os processos de um dia morarem definitivamente pelas covas deste ou de outro cemitério. Rezam as vozes que muitos até revolvem a terra e deitam-se por ali mesmo. Experiência mais freak impossível. Comprimidos os portões a cada noite, a segurança dos mortos dos sepulcros da entrada é garantida por alguns rondas. Quanto aos fundos, contemplaremos o medo causado pelos vivos.

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Na rápida passagem prometida, ela ocorreu quando eu ainda morava pela São Francisco de Paula, no Areal. Na casa imediata à nossa, nos vizinhos, a bisavó de Carolina havia morrido há anos. A jovem, já mãe de gêmeas, não queria ocupar aquele quarto, por causa da morta. A avó dela, dona Maria, que seguido usava nosso telefone fixo e nela reunia todas as características de avó (teu Deus também a tenha), disparou em frase que me ficou gravada na memória: "medo dos mortos. ora, essa. devemos ter medo é dos vivos".

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