22/10/2020

Realidades

Lembro que havia comprado o disco com as melhores da banda Smiths para ela. Mesmo que eu não tivesse certeza se ela gostava de Smiths. Mas pensava que os Ferreiras da língua inglesa viriam bem a calhar. Um rock alternativo, suave, melancólico na medida para quem se pretende atingir. Então foi comprado. Junto havia livros que considero dos melhores, foi um conjunto muito bem trabalhado enquanto presente de formatura. Acho que muito me representava, talvez mais do que a ocasião exigia, mas era eu posto à prova através da música e da literatura.

Isso foi antes de descobrir o caráter - ou mau caráter - do líder da banda inglesa, através das opiniões que vez ou outra circulam. Polêmico e preconceituoso. Cheguei a pedir desculpas para ela meses depois por ter comprado, apenas a informando e descarregando minha consciência de que eu soube dos disparos opinativos do referido músico. Lamentava por eles e por minha anterior escolha. Infelizmente não o cancelei de todo e ainda separo a portas fechadas e quatro paredes as canções para escutá-las, porque gosto bastante delas. Enfim, ainda as escuto.

Naquela ocasião, deixei passar a ênfase, a euforia de formatura, os festivos familiares, as amigas próximas, para declarar o que eu tinha de pretensão com ela. Mais ou menos como agora espero esse par de anos para relatar por aqui um pouco dessa história, que, afinal de contas, me chamou atenção em tom de desabafo para o seu desfecho. A vida pode ser muito cruel.

E, ao declarar isso, nada tem a ver com nossa relação, que dualmente não prosseguiu. Ela com namorado em seguida arranjado e que mantém relacionamento e espero, sinceramente, que prossigam felizes. Talvez as coisas tenham ido rápido demais na minha mente. Ou tenham sido evasivas com a realidade, como muitas vezes são comigo. Mas estava contente em ter aqueles momentos e desejava mais momentos como aqueles. Mas acabaram impossibilitados, acho que mais pela repentina nova relação que ela desenvolveu do que qualquer contrariedade de nossa parte. E tudo bem.

Mas quando aqui digo que "a vida pode ser muito cruel", foi em nossa despedida na rodoviária. Sim, outra vez as rodoviárias como testemunhas de minhas crônicas. O que eu posso fazer? São elas que avistam esses acontecimentos e, se pudessem contar, estariam nem aí, porque há outros acontecimentos mais marcantes. Mas esses são os meus. Me despedi dela. Subiria para meu ônibus e fui surpreendido ainda com o último beijo. Achei a cena por demais romântica. Nem eu, com bagagem no tema, havia pensado exatamente nisso. Aqueles senhores e aquelas senhoras com suas malas observando de alguma forma e imaginando nossa história - tão curta, sem tardar em ser cortada.

Mas me senti galanteador e envolvente. Com algum desenhado orgulho foi que subi as escadas curvas até o segundo andar do ônibus que me levaria de volta para casa. Acomodei a mochila maior em cima, com todo o cuidado para não derrubá-la na cabeça de alguém durante a viagem, a bagagem bem acomodada. E me acomodei ainda com direito à janela quando comprei antecipadamente a passagem. Na poltrona ao meu lado, a senhora que fez eu cair em um choque de realidade.

Não lembro como iniciamos o assunto, mas talvez eu tenha dado a letra que participei de uma formatura. Que gostava muito da formanda, algo assim. Na verdade não recordo se afirmei o que estou aqui afirmando. Mas ela, talvez por eu ser jovem, lamentou por sua sobrinha. Ela, que estudava em Novo Hamburgo, estava próxima da conclusão de seu curso, da dita formatura, e estava internada em hospital. A situação dela era instável, era grave. A mulher havia visitado a menina em NH e, de Porto Alegre, retomaria os rumos para o extremo sul. Me mostrou a foto da moça e constatei que também era muito bonita. Pensava eu na sorte que se deparava comigo, ter uma companhia naqueles dias, ser bem tratado, ter gostado muito da família e aceitado tudo o que havia se sucedido até minha partida de regresso.

Pensei em como minha amiga formanda também estava com as coisas em dia. Uma completa relação familiar com seus pais e irmão também em bom andamento nos estudos. Recentemente constatei que ele está em estágio finalizado de crescimento, se tornou um grande rapaz. Eu que dormi em sua cama por algumas noites. Ela que tem passado bem, acredito, com o namorado nesses últimos tempos. Ele parece um excelente rapaz. Por isso meus sinceros votos de continuidade e o que for melhor, realmente.

Enquanto isso, me assaltava o pensamento aquela menina impossibilitada de prosseguir a vida como ela mais gostaria ou desejava. Talvez deixando algum embasbacado como eu para trás. Talvez ele lutando com ela lado a lado. Talvez na amargura e na angústia.

Recentemente, uma parente minha passou pelos estágios da tal covid-19. Ela recém ingressa na casa dos 30 anos. O namorado também o que poderia fazer se não esperar por sua recuperação? Ele esperou. Parece que assim prosseguem agora que ela está recuperada. Foi um susto em todos nós, porque a condição dela era completamente instável e duvidosa. Teve a visão e a voz atingidas durante esse processo enorme de devastação provocada pelo vírus e seus afluentes. Eis que ela realizou sucessivos testes para detectar a doença do novo coronavírus e eles prestavam-se sempre negativos. Até um teste bem depois que acusou ela ter contato com a maldição viral do momento, mais de 155 mil óbitos no Brasil 2020.

Situações semelhantes, agora comparo, entre a menina do sul do estado, que estudava e foi internada em Novo Hamburgo, e a situação de minha parente, quase dois meses em uma batalha incessante contra os sintomas, com o uso de sondas, tubulações, medicações das mais diversas. Espero que o desfecho da jovem de NH tenha sido positivo da mesma forma que minha prima surpreendeu em recuperação, incluso da voz, mais rápido do que se projetava. Os parentes, familiares apreensivos, zelosos nas mãos médicas e na base das rezas religiosas para quem acredita e nada mais pode fazer.

A senhora que regressava para o Sul estava sim abatida, talvez vendo em mim a imagem de um jovem saudável que ela almejava para sua sobrinha. Não conversamos mais praticamente durante as horas de trajeto. Eu de certa forma chocado com essa outra realidade, nuvens sobre meu ensolarado dia de céu azul e planos. A vida é assim, incerta. Não sabemos o dia de amanhã. Fechei-me com os fones de ouvido e o olhar pela distância atingida horizontalmente pela janela.

Assim como para todos os personagens que relatei nessa história, sei de novas probabilidades e futuro a seguir, torço pela família que estava ilhada com essa situação de saúde em Novo Hamburgo. Agradecimento por onde ainda estou e consciente que nem todos desfrutam da mesma sorte: seja pelas questões de saúde, ou pelas percepções das coisas boas, mesmo quando tudo parece perdido, como a mim às vezes parece. Mas não está. Devo repetir para mim mesmo que: não está. A você também, provavelmente nem tudo está perdido.

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