Foi em uma cidade média de Santa Catarina. Os mais antigos talvez recordem ou ao menos descubram onde se passa o inacreditável relato. Baseado em fatos reais com o imaginário atiçado para a construção da vida desses dois irmãos. Um trabalhava pela ferrovia do mesmo município, no qual pedalava no ir e vir do trabalho matinal à despedida dos companheiros de labuta nos meios para os fins de tarde, quando o sol declinava e muitas vezes a bebida lhe convidava para um aconchego de bar pelo caminho. Gastava bem uns 12 minutos, calculava, para se deslocar na bicicleta de casa para ferrovia e vice-versa. Dessa maneira, muitas vezes considerava positivo retornar ao conforto do lar para desfrutar do almoço preparado por sua mãe, que era lavadeira.
Essa havia parido há muitos anos um conjunto de quatro crianças. Adir, o mais velho, era o ferroviário. João Lucas, o mais novo, ainda vivia pela vizinhança, já iniciado no processo de pressão para arrumar também ocupação de emprego. Havia ainda Otávio, que morava na região mais frutífera de Florianópolis. E Magda, que também vivia com os irmãos na casa da mãe e trabalhava em cargo arranjado na prefeitura daquele pacato município.
Conhecidos os pormenores da família, sabe-se que a refeição é um ato sagrado. Dona Filomena era uma cozinheira de mão cheia, o que nos faz pensar que praticamente todas as Filomenas assim batizadas no mundo assim o eram. Habilidades manuais também para o corte e costura, embora a ocupação em si fosse de lavar os uniformes dos filhos e dos vizinhos imediatos. Caprichava tanto nas tarefas domésticas que até o Otávio, irmão ausente daquela moradia, resguardava seus melhores trajes aos cuidados da esmerada mãe. Reuniões, bailes ou encontros de maior importância requeriam as lavagens e armazenagens da mãe. Com Dona Filomena não havia margem para erros.
E no almoço o momento em que os irmãos poderiam agradecer por estar vivos em passagem tão segregada dos maiores feitos da humanidade ali naquela cidade parcialmente esquecida pelo mapa do Brasil e lembrada somente pelos habitantes dos arredores, hoje chamados sulistas. Eram aqueles polos de microrregiões, de acordo? Assim era o pacato município. Mas indo a pormenores dessa localização que a nós não tanto importa, vai esfriar a boia da refeição e dessa forma não queremos. "Comam enquanto está quente", encarecia a Dona Filomena, não que precisasse, porque os filhos zelosos eram por apreciar boa conduta à mesa para saborear os preparativos de nobre ocupação do dia.
Eram pela comida de Dona Filomena que Magda retornava da prefeitura, distante ali não mais do que cinco minutos a pé, enquanto o Adir fazia maior esforço, pedalava e, com o calorão que se formava principalmente no sol a pino de meio-dia, vinha com a camisa parcialmente suada, o que gerava os lamentos e lamúrias de sua estimada mãe. "Ó, mas Adir, querido..."
E Adir, reconhecendo no trabalho de nobre coração em agradar aos filhos, coração desconhecedor até de outras maiores façanhas, importunada desde jovem à criação daqueles antes fedelhos com ausência de pai, Adir deixava a camisa de manchas nas axilas e no colarinho e por vezes na dorsal para trocar por outra, o que lhe rendia piadas na firma como um filhinho de mamãe. Mas ele sabia sua realidade socioeconômica e possuía consciência de classe, não nos termos sonhados pelo alemão Carlos Marques, mas reconhecia da maneira interiorana dele.
Acontece que o almoço de Dona Filomena lhe dava energias para aguentar o sol descer daquele sol a pino e reclinar-se como em cadeira que obedece dono até esconder-se pelas encostas que tornavam aquela cidade em formato de vale superaquecido, justamente pelo pouco escoar dos vindouros ventos. A cidade, portanto, era abafada pela má circulação dos interrompidos ventos litorâneos e o esforço de Adir por pedalar aquela distância precisava sempre ser recompensado com a boa comida de preparação magnífica de dona Nena, como era conhecida pelos vizinhos mais próximos.
O ensopado de batatas era um prato de luxo naquela humilde residência. Quando, ao amanhecer, Dona Nena avisou os despertados de que aquele seria o prato principal para o encontro entre manhã e tarde, Adir de súbito teve sua melhora de humor necessária para pedalar até o Tour da França. Beijou a testa da mãe, se despediu do irmão de 18 anos e também de Magda, que estava ainda retirando a cama do corpo, como se diz, sem tanta pressa, pois, embora o batente com a prefeitura era mais rigoroso, a distância para o trabalho era menor e portanto ela poderia espreguiçar-se um pouco mais além, de esperar o café esfriar mais um pouco, calor que já se ameaçava acometer por aquele dia de outubro.
Adir esfregou com certa violência os cabelos do caçula João Lucas. "Não esqueça que venho ao almoço", confidenciou somente ao irmão em frente à casa, após já ter se despedido da mãe e da fã de café, Magda, no interior da casinha. "Temos uma tarefa das grandes nos trilhos, mas eu regresso, hein", deixou claro.
A manhã percorreu-se naquela subida gradual de temperatura e do astro maior ao alcance de todos, por cima daquelas montanhas ao fundo da paisagem e fazendo possível fritar um ovo sobre o avançado das telhas de fibrocimento e também dos chalés. O trabalho de Adir estava excepcionalmente cruel para aquela parcela de funcionalismo público em que muitas vezes assistem ao trabalho dos cupinchas. Mas Adir sabia que aquele serviço de solda era com ele mesmo. Com a máscara ampliando a temperatura contra seu rosto, pensava somente no degustar do ensopado de batatas.
O irmão mais velho era o único deles, fora o Otávio que parecia já estar noivando novamente por Florianópolis, era o único a ser casado, mas o casamento se desmanchara após três anos e voltou para casa de Dona Nena. Magda começava a encarar uma realidade de tia solteira, embora os sobrinhos ainda não haviam surgido de outras barrigas. Talvez o Otávio... porque o Adir empacou essa questão de relacionamento desde o divórcio, se tornara ele mais bruto para com as mulheres e, dizem, na ampliação das fofocas, que inclusive em casa, paciência mesmo era só com a mãe, a sagrada Dona Nena. Com os irmãos era mais seco e ríspido nos diálogos e ações, tomado ele pela conversão em sujeito pai da residência, como se era tremendamente aconselhado à época e muitas vezes se vê pelas casas de humilde embrutecido Brasil.
"Ah, as batatas... o ensopado, o sólido e o líquido nas medidas exatas..." e quando o horário de almoço já estava quase no findar é que arreglaram de vez o trilho e estavam dispensados.
- Precisam nem voltar à tarde - afirmava o engenheiro chefe do esquema ali. Ou seja, além de degustar as batatas, Adir poderia aproveitar a tarde como descanso após demasiado cansaço matinal.
Deixava para trocar a roupa suada em casa, poderia tomar um belo de um banho e se esticar numa rede, comprar algo que precisassem, seria da família naquela tarde. À essa altura, o horário de almoço de Magda, naturalmente já mais cedo, estava expirado e ela já havia comido sua porção de batatas e retornado à prefeitura. Dona Nena tinha seguido para lavar roupa também dos vizinhos, deixando o conforto do lar. O problema surgiu porque o menino João Lucas estava com fome. Comeu e não se satisfez, esperou e esperou o irmão e nada. Comeu mais um pouquinho. Esperou e viu que a panela poderia ser rapada. O irmão, que gostava, sim, bastante de batatas, deu um jeito em restaurante ali perto da ferrovia, não tinha mais dúvidas.
Mas estava errado. Ouviu a chegada da bicicleta de Adir, som inconfundível após tantas repetições rituais. Encostou a magrela ao lado da porta, limpou as solas no tapetinho de entrada como manda o complemento ritual. Subiu os degrauzinhos e vinha já se aprontando simbolicamente como se a uma majestosa refeição de reinado, faltando apenas o tapetão vermelho, o lenço ao pescoço e a bandeja com o prato principal coberto por aqueles objetos de prata que escondem o que está por baixo deles. Se fosse o caso, ele seria plenamente surpreendido não pelo que havia embaixo da proteção de prata, mas pelo que dali não havia.
Estava tirando a camisa já encharcada em suor, a excitação por seu pleno almoço favorito contribuindo para aquela formação superficial em sua pele. Enxugava a distribuição sudorípara da testa com as costas das mãos, surgia ainda sem camisa para averiguar uma última olhada antes de devorar de vez aquela porção. Foi quase de ponta de pé até a cozinha e prosseguiu até o pequeno fogão. Destampou a panela e deparou-se com: nada. Ficou zonzo, Adir subitamente estava plenamente desconcertado, sem reação. Olhou em volta, ninguém pela casa, a porta assim aberta. A Magda já na prefeitura, já com certeza. A mãe nas tarefas pelas roupas que o sol lá em cima é dia de lavar e secar, claro que é. O pirralho onde que estava? Gritou pelo nome de João Lucas que deveria ainda estar ali dentro. Ora, se avisou que voltaria para almoçar por que haveriam de comer tudo? Só poderia ser culpa do moleque.
Para azar maior de João Lucas, a casa, pequena que também era, não tinha tanto esconderijo e a cortina o denunciou. Mas Adir de certeza que ali estava o responsável pela sua fome nem confirmou com o rosto visível de João e já o arrebatou de trás do tecido com uma pancada do cinto que havia tirado. Repetiu sucessivos golpes até o garoto já estar marcando e pedindo perdão. Adir estava recuperando a consciência que lá no fundo ele ainda tinha e o João Lucas cavou seu sepulcro ao atacar-lhe pelas costas, querendo uma revanche da briga em que apanhara instantes atrás. Adir, ainda enfurecido pela fome, terminou de carregar as barrinhas vermelhas de cólera e pegou da pia uma faca para atingir o irmão.
João Lucas gelou, expressão facial impotente diante da força bem maior do irmão encorpado ainda com objeto prateado, reluzente e cortante. Ferrou para João que disparou pela rua tentando ganhar vantagem naquela disputa completamente injusta para ele que jamais havia temido pela vida como assim estava. Adir foi no encalço do rapaz e mal ele tomava o meio da rua, o atingiu com uma facada firme nas costas. O garoto não chegou a tombar, mas parou um pouco de correr, entrecortado pelo instrumento. Tomado da mais excessiva cólera de sua passagem, Adir, não satisfeito, retirou o objeto do irmão e lhe acertou mais três vezes. Pelo avaliar futuro do médico, a quarta, pelo local e incisão, teria sido a fatal. O corpo de João Lucas estava no meio da rua. O griteiro e a correria foram poucos, foram ligeiros, mas despertou alguns vizinhos da sesta naquela tarde quente. Com a faca nas costas do irmão, Adir ajoelhou para juntá-la. Passou por seus olhos a imagem do desespero que seguiria eterno para sua mãe, a irmã que fazendo contabilidades em prédio público de nada ainda saberia, o Otávio que viria de Florianópolis inconsolado pela perda do irmão caçula, sem dúvida seu favorito. Ele que estava sem para onde correr.
Pensou retornar os passos trôpegos até sua bicicleta. O casamento que dera errado, ele era agressivo com Maria Lúcia. Ela não o suportara. Ela foi-se da cidade, foi-se com encontro, disse que não toleraria mais. Adir enxergando somente lembranças, passado diante das pestanas, quando visualizou sua bicicleta, ela estava montada por outro jockey. E estava acompanhado por mais dois. Os vizinhos haviam chegado. Tentou retornar o passo então para onde estava caído para sempre o irmão João Lucas, mas o menino estava cercado por outros quatro vizinhos, duas senhoras, um marido e o filho do casal, de uns 14 anos.
Era muita gente que se acercava, mesmo com faca em mão não havia para onde fugir. Tentou correr, mas a polícia já ficou de imediato sabendo e, sem a companheira bicicleta, com Maria Lúcia só nas recordações e o irmão para sempre no relatório de sua ficha criminal, logo foi pego. Não havia testemunha direta pela janela daquele crime à luz não do meio-dia, mas de passada uma hora da tarde, quase duas. Os vizinhos que de casa viram o desfecho do macabro espetáculo, relataram para assinatura final que a morte fora às 13h41. Com a faca em mãos, o corpo do irmão estendido e ensanguentado ao solo de terra batida e nenhuma batata na panela, Adir foi sentenciado rapidamente pela corte.
A mãe quase que parou sua história por ali também, porque até desmaio sofreu. Felizmente, para ela, Otávio a levou para morar em Florianópolis, para conhecer sua nora e o neto que enfim nasceu dali oito meses - já estava grávida a noiva de Tatá. Sem Nena, a casa permanecia ali em humilde bairro, Magda quis aproveitar seu emprego na prefeitura e no fim das contas agradeceu que ao menos a morte foi na rua, não amaldiçoando para todo sempre a residência de sua vivenda. Ela continua solteira e talvez vá morar em Florianópolis também.
O Adir divide uma cela com outros seis apenados. As refeições eram servidas por baixo da porta e raramente eles poderiam ir para refeitório. A comida é tão ruim que costumam fazer misturas em que nem necessitem de talheres, muito menos uma faca. Talvez de colher se tomem os devidos cuidados. Quando, ao findar de quatro meses, finalmente um ensopado de batatas havia chegado pela portinha, um dos líderes da facção, que, naquela cela era acompanhado por outros dois, e no total da penitenciária por outros 40, disse que gostava muito de ensopado de batata e Adir iria comer não. Ele sentiu a falta de sua mãe.
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