Após alguns minutos, no perfeccionismo a que se dedicava em suas funções, Fabrício havia encerrado a limpeza do balcão. O restaurante estava quase fechando. Ele resolveu adiantar essa limpeza, na esperança de que mais ninguém aparecesse. Mas ele era daqueles que tentavam acertar na loteria esportiva e erravam jogos fáceis, mesmo que acertasse aos difíceis. Perdia prêmios por uma ou duas partidas, o que era de muito se lamuriar, uma vez que as apostas chegavam até a 20 jogos. Estatístico, calculava ele que, na média de suas apostas, errava por três. Quando se aproximava da premiação, o máximo que arrecadava era o suficiente para cobrir as apostas por um período de dois meses. Então retroalimentava o ciclo de apostador convicto. "Um dia a sorte virá."
Enquanto a tal da sorte não fazia as honras de entrar no restaurante, o negócio era atender a clientes. Fabrício somava 28 anos e uma especialização em educação artística, que ele não sabia bem para que utilizar, mas seu bom gosto reservava palpites no cenário desolador daquele restaurante de beira de estrada. O chefe, um homem muito ocupado traindo a esposa e fiscalizando um mercado que havia deixado para um dos filhos, acatava as ideias de Fabrício. "É um bom rapaz, muito trabalhador e de ideias satisfatórias."
Diretrizes que rendiam a Fabrício, um salário pelo menos satisfatório para sobreviver sozinho. E nada mais. Como o restaurante era localizado às margens da BR, ele tratou de ocupar um dos poucos apartamentos do pacato município. O proprietário do prédio logo percebeu que não venderia fácil algo tão urbano em tão pacata comunidade. Um erro crasso dos gananciosos e hiperbólicos engenheiros de nosso país. Mas, construído, posto em pé o tal do prédio, Fabrício conseguiu uma ocupação no segundo andar por uma boa barganha. Uma pechincha. Algum desses termos deve servir. E, caso não sirva, ao menos o valor que depositava para o aluguel tímido das peças reservava um sorriso estampado no magro rosto de Fabrício.
Quando ultrapassava aquela margem dos 20 e poucos da canção ramundiana, Fabrício percebeu que já lhe chutavam em idade algo entre 30 e 36 anos. Mas procurava não ofender-se. Aliás, o jovem... o semi-jovem (como ele próprio se considerava) procurava ofender-se com nada. Nem com clientes arrogantes de passada, nem com aqueles que por puro prazer sádico emputeciam seu dia. Tampouco demonstrava irritação quando seu chefe lhe pedia (em total tom de ordem) para auxiliar na limpeza dos banheiros ou do saguão, na ausência da funcionária responsável, uma desleixada de meia idade.
"Adiante isso, por favor, Fabrício", pedia o chefe. Na educação que lhe denotava o momento, inclusive lembrar do nome de seu funcionário. Um esforço muitas vezes grandioso para o big boss.
Assim vivia Fabrício, agradecido de sua diplomação em educação artística, porque a ele parecia mais útil incutir conhecimentos na administração do restaurante junto a seu chefe, embora não recebesse um puto centavo a mais por isso. "Pelo menos não perdi meu tempo com filosofia", dizia para si mesmo, muitas vezes mirando no espelho o seu rosto que demonstrava cansaço após mais uma jornada diária. Impecavelmente barbeado, higienizado e bem dormido. Bééééé - sirene de errado para a última descrição, porque obviamente Fabrício vivia com uma tormentadora insônia. Sonhos que não vão dormir.
Mesmo assim o acolhedor despertador o preparava para o começo de outro dia na labuta. Banho, barba, café da manhã preparava lá mesmo, na cozinha do restaurante. Ao mesmo tempo que a redundância fazia parte de sua rotina, acreditava ele que por aquela porta de vidro poderia adentrar a qualquer dia, a qualquer hora, pessoas que mudariam sua vida.
Percebeu que não seria Juliana, a garçonete que arrumara um namorado no verão passado. O cara vivia em uma cidade próxima dali em uns 90 km. "Questão de menos de uma hora", ele se gabava. Na ausência do quase noivo, Juliana se gabava por ele, complementando o discurso da alta velocidade valorizada na 4 por 4. Além do mais, o encarregado e carregador de Juliana nada tinha a ver com ele.
Parecia que nessa novela se mudavam os endereços. Fabrício havia nascido na capital, estudou na capital, mas os custos de vida o levaram para o interior, também para mais perto do pai, que havia nascido por ali e deveria findar seus dias na região em que era oriundo. Enquanto o namorado de Juliana, aqui chamado de Thomaz, era um sujeito interiorano com toda a pinta capitaneosa, seja em suas atitudes ou demais modos de conduzir a vida. Os prédios e o trânsito pesado não o assustavam. Enquanto a Fabrício os edifícios e tráfego intenso causavam um misto de preocupação com a desorganização urbana e o prazer arquitetônico e urbano. "É, eu poderia ter cursado arquitetura, sim."
Mas não cursou. E lá o sol baixava no horizonte e o restaurante se temperava para servir o jantar a seus famintos e viajantes clientes, somados às moscas que se hospedavam em um simulacro de hotel de estrada, adjunto ao restaurante que, sim, era maior do que os serviços de hotelaria. O estábulo acolchoado ali reservava um total de seis habitações para clientes desesperados em descansar as pernas da rodovia. Ou para quem não gostasse de si mesmo, ou mesmo não se importasse com as baratas. "Nunca apareceram no hotel", garantia o chefe de Fabrício. Não sejamos misteriosos. Este se chamava Rodolfo.
A janta não pertencia a Fabrício, que, ao deparar-se com o que chamavam noite, estava dispensado para fazer "sabe-se lá o quê, mas não manche o nome de nosso estimado restaurante", pedia encarecidamente Rodolfo enquanto manuseava um charuto de procedência duvidosa. "Mas que faziam muito sucesso", ah, disso não tenhamos dúvida, patrão, oh, tenhamos a grata da certeza.
Mas Fabrício costumava fazer nada demais com o ânimo que lhe sobrava e o máximo que frequentava era uma das três discotecas da cidade. A cidade em si também se localizava próxima à rodovia, então alguns dos viajantes, também com a bateria em duração adequada, aproveitavam para conhecer alguma noite que não lhes apetecia anteriormente conhecer. "Na falta de opção..." ou até para livrarem-se de passar mais naquele hotel maldito de beira de estrada. Caso não encarassem o hotel adjunto ao restaurante poderiam muito bem escolher entre outras quatro ou cinco péssimas opções. Para todos os gostos ou sem gostos.
Com o paladar cada vez menos audacioso para comida, com menos ganas de algo maior na vida, Fabrício ali, naquela cidade parcialmente detestável (ao menos não há furacões, ciclones, terremotos, vulcões e nenhum sinal de alienígenas, agraciava discursivamente seu pai) se acomodava havia três temporadas e preparava em seu secreto diário a escritura de episódios sobre personagens que teve a excentricidade - mais do que a devota alegria - de conhecer. Assim serão narrados os contos de Fabrício.
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