Meu pai dirigia por uma avenida muito larga e arborizada. Era como se fosse a conhecida Dom Joaquim. A avenida também se mostrou prolongada, com seu final incerto. Eu precisava chegar até um local afastado, uma escola grande e também arborizada em volta, com amplos pátios verdejantes. Buscava aquela que foi minha tentação maior nos vindouros anos adolescentes, de pele muito alva e cabelos muito escuros. Uma descoberta que meu desejo descobrira antes dos demais descobrirem. Arqueologia adolescente de resultados infrutíferos, mas ela era tremendamente bela, como ainda é, e pra mim sempre foi, mesmo que outros não notassem.
Untei esse desejo oprimido pelos posteriores anos de afastamento para seguir ao lado de meu pai para novo destino. Após chegar àquela escola afastada de cunho biologicamente sustentável, vê-la, distante como uma novela em que apenas assistimos, nada participamos, estive novamente eu na companhia de meu progenitor. Meu pai dirigia e chegamos para uma festa no Galpão Satolep, endereço da rua José do Patrocínio pelotense, que na verdade é apenas uma quadra, uma atravessa na região extremamente portuária da cidade, de frente para a incansável coletora de toras de madeira, que empilha seus trâmites à beira do canal São Gonçalo em pilhas até onde a vista e a contagem humana alcançam. O Galpão Satolep, antes chamado Galpão do Rock, mas cada vez mais descaracterizado pelos diferentes estilos que o lotam entre o funk e a música pop, estava com seu público habitual e uma penumbra tremenda, escuridão que confunde e possibilita novos formatos aos rostos juvenis.
Meu pai, à beira da idade idosa, me acompanhou no Galpão, como nunca fez em antes vivida vida. Estava ao meu lado, parcialmente deslocado, como muitas vezes o vi pelas conversas em que não participa, mas anseia participar, como a um cão à espera de ordens ou de aconchegos ou de mero carinho. Dele herdei um pouco desta expectativa viciante e ininterrupta, até que alguém em volta tome uma providência. Em sonho estávamos ambos parados tentando entender o objetivo daquela festividade fora de época e decência. Não sabia o dia da semana, nem a ocasião ou o que iria tocar na festa.
Procurei e ansiei por rostos conhecidos naquela trevosa obscuridade festiva, mas nada encontrava. Ficamos estaqueados, marcando ponto em proximidade do portão de entrada-saída enquanto outras criaturas aglomeravam-se em pequenos grupos para o fundo do espaço galponista de propriedade de Manoval. Nenhuma vivalma de meu prévio conhecimento, agonia sentida por ali estar envolto ao desconhecido. Apenas meu pai era uma companhia bastante desconcertada ao ambiente, uma vez que ele mantinha sua rigidez de lei seca, incluso talvez por estar dirigindo, enquanto eu também não tomava ilustre iniciativa de servir-me uma bebida ou copo.
Passados alguns instantes nessa apostólica situação à procura de ordens, duas garotas estavam de saída do ambiente. Uma delas me alcança um ticket, um papel, um fowder, um não sei o quê de formato estranho. Ela me pergunta ligeiramente, já em deslocamento em direção ao lado de fora, no apronto de quem aconchega e acomoda melhor a roupa ao espaço dos ombros e das costas, ela me questiona se desejo um big mac, da lancheria universal Mc Donalds. Meio desconcertado também com a indagação, respondo que sim, gostaria, comeria um, sim, sim. Ela então confirma que o papel entregue é para mim, sou o destinatário da entrega. Pergunto de volta se aquilo é um cupom, um vale, um o que quer que seja do tipo. Ela confirma "sim, sim" e segue com sua amiga ou namorada em direção ao portão de entrada-saída.
Ali prossigo parado ao lado de meu pai, diálogo praticamente nulo, mas agora com um cupom, um ticket, um folhetim, uma ordem impressa para retirar um hamburguer da lanchonete mais conhecida do planeta. Sei nada do que pode ser feito. Tão estranho como ter chego ao Galpão assim do nada, começam a aparecer voluntários para uma conversa descompromissada. Apesar do volume da música e da escuridão que nos cerca, alguns garotos aparecem para trocarmos uma ideia. Recordo que um deles é bastante alto e bastante gordo, mas nenhum dos que se aproximam é de minha ciência de quem fossem. Ficamos parados então em círculo, ou formato próximo a isso. Uns de frente aos outros, com quase nada a ser dito. Meu pai ainda ali, parecendo menor, baixo e magro, perante à presença do alto e gordo.
A festa se prorroga. Era melhor eu sair logo dali e ver o que meu cupom para um big mac poderia fazer por mim. Quando saio, é novamente dia, meu pai segue intacto ao volante em uma resistência diurna-noturna-diurna inacreditável. Ele conduz pelo centro em direção ao estádio do Brasil, porque entendi que eu deveria trabalhar naquela tarde.
A bem da verdade, os horários estavam mais confusos do que jogos simuladores, como The Sims ou GTA. Durante meu sonho, não durmo. Já se aproximava o horário de partida naquele dia difuso e complicado. Me despeço definitivamente de meu pai na ocasião, ele segue seu rumo, provavelmente para casa e para descansar após os cansaços de meus sonhos. Caminho por ruas absolutamente vazias, em um misto entre as mais abastadas zonas da cidade, em prédios equiparados para boa localização em cubículos sufocantes, entre boas e más calçadas, entre ruas de calçamento em paralelepípedo, mas ciente de que estava perto de meu destino final, o jogo do Xavante.
Deparo que estou próximo do estádio e me assusto com o traje que estou vestindo. Para entrar no jogo do Brasil, rubro-negro, era impensável acessar com uma camisa amarela. Nem tenho camisas amarelas, mas acontece que eu estava vestindo uma camisa amarela. Incrível. Percebo que tenho uma camisa por baixo. Ela é rosada, serve para um bom disfarce. Abro a mochila e verifico o espaço para conseguir a troca. Saco a camisa amarela de meu corpo e visto a rosa. Acabo tirando as duas camisas de uma vez só, fico descamisado na rua. Ninguém passa. Verifico, olho para os dois lados. Demoro muito nessa função, sinto a eminência de um assalto. Mas ninguém aparece. Estou quase finalizando.
Encontro meu crachá da Associação dos Cronistas Esportivos Gaúchos. Desenrosco da mochila, ponho auréola sobre a cabeça, colar envolto ao pescoço. Estou identificado para seguir minha missão, alguns passos distante. Mas enquanto finalizo a operação com a mochila, à minha esquerda, na rua que se atravessa à que parei, passa primeiro um suspeito. Depois outro. Eles aparentemente não se conhecem. Um deles está sem camisa. Eles param na esquina. Conversam, cochicham um com o outro. Olham em minha direção, riem. Há mais ninguém como alvo. Sou o escolhido.
Reinicio minha trajetória em caminhada. Camisa rosa, nada de amarelo. Nada do EC Pelotas. Os homes se aproximam. Um deles está montado em uma bicicleta. Estão sedentos. Caçam. Sou a caça. Eles estão próximos demais para que eu não os perceba, prefiro ir me virando aos poucos, apesar de ter apertado o passo. Vou tentar conversar para ganhar tempo. Eles tem olhares diabólicos. Estão maníacos.
A surpresa que me toma é inacreditável. Eles mostram as unhas, os olhares ainda sádicos em minha direção. Oferecem maquiagem! Isto mesmo: maquiagem. Apontam para as unhas em trabalhos de manicure. Não consigo entender como é possível. É o golpe para um assalto mais inusitado a que já me deparei. Continuo andando, nego o convite deles, não estou interessado. Não quero me maquiar. Não vou transmitir futebol para a televisão, é apenas áudio, é somente sonoro, é só rádio. Não preciso de maquiagem, obrigado, o-obrigado, senhores. Mas eles me perseguem, creio que irão me cercar. Não tenho escapatória.
Mas aparece o bairro popular a meu favor. Crianças também em bicicleta, mães em volta. Cestos de roupa. Tempo bom com sol, nada de nuvens a bloquearem meu caminho. Risos, brincadeiras, clima de domingo. Os homens saqueadores ficam para trás. Estou cercado agora pelos pequenos que brincam de se alcançarem. Quem for tocado pelo companheiro fica com a missão de tocar outra pessoa, no que costumávamos chamar na infância de pega-pega, mas alguns para cima do país devem chamar de pique. Estou a salvo. O estádio se avizinha.
O Bento Freitas está diferente, está virado em um canteiro de obras. Mas diferente mesmo das obras que foram feitas e continuam sendo feitas, quase concluídas. Está mais Baixada do que nunca, como se envolta a um lodo ou pântano. Me preocupo com essa situação. Faço o contorno por uma praça da chamada região do Cruzeiro. Os carros começam a disputar espaço para o estacionamento. O principal estranhamento com o estádio xavante creio que seja a total abertura da lateral do campo. É possível, desde o lado de fora, visualizar todo o trabalho de aquecimento dos guerreiros que se preparam para a partida. Um time em cada lado do campo no trabalho com bola. Os treinadores a fiscalizar, a torcida chegando para o espetáculo anunciado e prometido.
Eu também necessito entrar, mas preciso, com meu devido crachá da ACEG, contornar o estádio até a rua João Pessoa, para o credenciamento na entrada. O estranho é que o estádio está todo aberto, não sei porque eu precisaria cadastrar ou a torcida pagar ingresso para assistir, mas igual vou procurando madeiras, toras e tábuas no chão para onde pisar sem me embarrar naquele cenário desolador. E vou avançando. Percebo novamente meu amor de tempos juvenis, desta vez a pleno trabalho. Percorre o gramado, câmera em mãos, perfeita em minha acepção memorativa. Trocaria todo aquele infortúnio, todas aquelas mazelas do dia a dia por uma oportunidade com ela. Para que me ouvisse, para que me explicasse, para que me visse. Mas ela está focada, ela não me vê. Ela, a depender dela mesma, nunca me viu. Prossigo a passos firmes dentro do possível, pronto para não atolar em dois pântanos distintos, o real e o ficcional de meus pensamentos desvirtuados, desalinhados do ambiente onde caminho.
Percebo meu primo nas arquibancadas. Ele não está atrás da goleira, onde costuma assistir aos jogos, está no pavilhão chamado de social. Onde os mais velhos ficam. Eu abano para ele, ele me abana de volta. Nem somos tão próximos, mas é uma cena quase que emocionante. Um reencontro inusitado após meses de paralisação das atividades pela pandemia. Ele está ali sentado. Há poucas pessoas ainda dentro do estádio, poucas em volta. Eu atravesso o gramado. O estádio está com a lateral toda aberta pelo que seria a Avenida Juscelino Kubitschek, lembram? Então vou entrando. Depois vou credenciar-me, sim, porque sou correto. E que fim deu o meu hamburguer big mac?
Avanço pelo gramado, os jogadores parecem não se importar com o intruso, nem os flanelinhas que cuidam os carros e as vagas de estacionamento, nem os demais torcedores, nem os demais da imprensa que ali também deveriam de estar, inclusive chegando mais cedo do que eu. Atravesso o campo e vou para o alambrado. Dou um salto, subo na tela. Nunca fiz isso. O ex da menina era chamado de Homem-Aranha. Ele fazia isso. Será que é uma relação com esse fato? E eu quem sou? Subi na tela, escalei os arames, quero cumprimentar meu primo. Estendo a mão pra ele. Ele desce dois degraus. Vamos alcançar as mãos, um a ou outro.
Acordo.
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