10/06/2020

Se eu tivesse...

Caminhava a passos firmes pelas ruas, com a mente divagante. No dia, logo cedo conferiu no banco estadual que havia entrado seu humilde salário. O contentamento era completamente efêmero, em seguida cedendo lugar para a frustração de quem pouco ganha. O valor ultrapassava do considerado mínimo, mas não chegava ao piso de sua categoria. Chutava pedras pelo caminho e contou bitucas de cigarro largadas a esmo. Nada lhe sobrava aos finais de mês e ele pensava que não podia reclamar muito, que ainda estava empregado apesar dos 15 a 16% de desemprego assolando o país. Mas também pensava que havia cursado o ensino superior para desfrutar de algo bem maior, sem depender da mãe idosa ou da tia solteirona sem filhos que lhe mesava quase 10% do salário dela, outro picorrucho.

Alimentação ok. Duas refeições e uns complementos. Café da manhã desconhecia com a graça santíssima trindade que oportunizava um emprego no turno vespertino. Dormia sempre tarde e acordava hora antes do almoço no local de maior desconto que conseguia próximo ao apartamento de segundo andar em prédio com quatro, um cubículo meio centro, meio bairro. Contas, contas e mais contas a pagar. Havia cancelado o streaming para filmes online. Detestava tanto o que precisava ser pago, que lhe comia os dígitos salariais como se fosse um furioso pacman, quanto o processo de ida aos bancos e lotéricas. Boletos a dar com o pau. Sentia a falta do pai que podia fazer isso por ele no começo de sua vida adulta. Passados.

Distraído, o sinal de trânsito a revesgueio de sua visão quase acabou com uma perna atropelada, mas resultou mesmo foi em dois longos buzinaços e um xingamento à sua idosa mãe. Ele não deixou por menos: 1 a 1 no placar de ofensas enquanto o do Honda Civic cantava pneu na rua asfaltada havia três anos. Desgraçado. Desgraçados. Havia um de óculos escuros no banco de carona a rir da quase-tragédia, balançando a cabeça, em lapso notado por trás do insufilm escuro. Típicos consumidores de milk shakes repugnantemente doces em drive-thrus.

Continuou sua sina de pensamentos, considerando que não era exatamente mesquinho ou mão-de-vaca, apenas queria um salário mais digno, o mínimo de luxo que não fosse sua mensalidade a custo da sobrevivência básica: comida-água-luz-telefone. Ainda herdara da mãe o perfeccionismo para não atrasar impostos. E votar em esquerda, sempre que possível, apesar do centrão querer se apoderar de tudo. E tantos gritos de - fora fascista! - fora racista! - fora machista! em nada resultarem nos últimos três processos eleitorais. Duras derrotas. Severos golpes. Golpe ou impeachment? Golpe, ele tinha certeza.

Pensando numa duplicata oportuna de seu salário e poderia ajudar a tantos outros. A dívida com o Freitas, o empréstimo do Gabriel, o disco que prometera a Victória. Isso, isso, isso. Mas ajudar além, nada de restrições ao grupo de amigos classe-média, a maioria ainda parasitas das próprias famílias, fato que, sendo ele assim também considerado, o incomodava. Imputava mudanças que tardavam a vir e nunca vinham.

Queria ajudar àquela ONG de gatos de Santa Maria. Ou era Cachoeira do Sul? Se houvesse nas duas cidades, ajudaria ambas. Gostava mais de gatos desde que a Chiquinha aparecera. Nem se lembrava do porquê a felina tricolor se chamar Francisquinha, seria do seriado mexicano que era retransmitido havia décadas pelo Sistema Brasileiro de Televisão? Talvez. A Francisca completava 11 anos no mês passado e morava com a mãe dele, o que seria para a bichana uma avó. Questão de pátio, jardim, lugar para caçar, coisa que o apartamento de segundo andar dele, naquele cubículo meio centro, meio bairro não disponibilizava para a castrada gorduchinha.

Ajudaria a ONG dos cães meio afastada do município, não tinha dúvida. Era para os lados do Capão do Leão e tinha sempre dezenas, senão centenas de cães esperando um melhor destino, uma adoção convincente, em um trabalho sério de seus conterrâneos. Lembrou de seus tempos a ajudar crianças em vulnerabilidade social, em especial meninas, e daria uma ajuda mensal para o instituto do prédio amarelado na baixada do centro em direção ao bairro, era perto de onde ele morava. Auxiliaria, sim. Ajudaria também o extremo oposto da vida, o lar de idosos em que ele serviu sopa durante três semestres, não fechou dois anos. Será que ainda estavam por lá as donas Dercy, Jurema, Faustina e Dilminha? Era possível que a resposta fosse qualquer uma das combinações: 100%, 75%, 50%, 25% ou até todas inscritas na lista definitiva das paredes e tábulas de cemitério. Impossível saber sem visitar. Enfim, ajudaria com pagamento ao invés de servir sopa nos jantares cedo, elas recolhidas pouco depois do horário destinados às galinhas. Antes mesmo dos gatos saírem às caças noturnas. Já havia citado a ONG dos gatos? Já, havia pensado nos tigrados, sim, só não sabia se Santa Maria ou Cachoeira e isso não fazia diferença, porque ele não possuía em mãos os recursos necessários.

O que mais ajudaria? Gatos, cães, crianças em vulnerabilidade social, lar das idosas... Albergue para os moradores de rua. Isto sim, melhores condições sanitárias, reforço na refeição que dispunham. Mereciam. Acha ou desconfia que não somente aqueles que nunca dormiram na rua ou passaram frio sem ser por imprudência de não obedecer a regra materna de levar um casaco. Aqueles desgarrados mereciam melhor decência nas acomodações. Compraria jogos de cama, toalhas, itens de higiene. Se sentir sujo era terrível. Mesmo ele, que não era fã do banho diário, principalmente entre maio e agosto, sabia responder que era brabo não se aceitar higienicamente.

Claro que esse aumento, a duplicata salarial resultaria em uma namorada digna de seus atributos, jantares romanescos e passeios indefinidos na turva mente, ao gosto dela. Ela receberia seus agrados e presentes trimestrais, não mais do que isso para não acostumar mal. Mas importava saber mesmo onde aplicar a grana para o bem estar do próximo, muito além da Clara, da Brenda ou da Francine. E mesmo da Vanessa. Será que não era Santa Maria a ONG dos gatos? Não importava.

Recuou em puro reflexo em uma esquina quando um Renault passou chispando pela poça d'água, com os respingos quase o atingindo. Movimento digno da realidade sobrepujando a ficção do filme Matrix. Filho de uma égua. Fosse político investiria na melhora gradual e sistemática do transporte público, ao invés desses barbeiros imbecis financiarem seus modelos prateados, uns iguais aos outros.

Com um salário político então, ou mesmo assessoria de um deputado poderia pensar além das ONGs de cães, gatos, Santa Maria, Cachoeira do Sul ou Capão do Leão, lares de meninas, orfanatos, idosas, crianças com câncer, assistências para os deficientes visuais e bem estar dos albergues noturnos. Podia ajudar também às agremiações esportivas e aos atletas independentes, patrocínios pontuais para homens e mulheres competirem e alavancarem suas carreiras. Eles não esqueceriam. Mensalidade e carteira de sócio na mão naquele clube de sua preferência, pendendo a fechar as portas, não fosse sua ajuda em três dígitos mensais. O velho Carlos agradeceria muito a ele, poderia sentir os pesados tapas sobre o ombro, a gratificação do amigo pela ajuda prestada.

Em tudo isso ele pensava, martelando como o mundo, o seu mundo, seria melhor com um salário digno. Não era coisa para ele e sim para todos que estivessem ao alcance. Já não se importaria do dinheiro não sobrar no fim do mês, pois as aplicações seriam justas e com retornos, sorrisos que não competiam aos preços das prateleiras. Dobrou outra esquina quase chegando a seu cubículo meio centro, meio bairro, quando notou na calçada, em frente ao prédio vizinho, um mendigo que ele sabia quem era. - Ora, de novo esse...

- Uma moeda, senhor, pra garantir a janta.
- Hoje não tem.
- Ontem também não tinha.
- Talvez amanhã...

E o mendigo notou que ele já estava com as chaves na mão esquerda e que o barulho dos bolsos só poderiam ser o seu exclusivo desejo.

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