Logo no café da manhã, ele notou os companheiros animados. O salão para o desjejum estava ruidoso. Todos conversavam alegremente sobre as expectativas para a próxima vida. Alguns ainda recordavam de flashs da última passagem pela Terra e sabiam que logo tudo seria esquecido. Se chegava zerado em memórias e com apenas muita fome, causadora daquele prolongado choro de boas-vindas. Ao lembrar dessa realidade, ele estremeceu. Pousou a xícara e cruzou os dedos, entrelaçando-os, enquanto os cotovelos ficavam repousados sobre a mesa. Cobriu a face com as mãos, ao despencar o rosto e o pensamento para longe. Retornar bebê era tão fastigante. Esperar pelos cuidados maternos em busca do bico do seio e depois o bico de borracha e depois a mamadeira. Enfrentar as assaduras sem que as mãozinhas alcançassem a solução sozinhas.
Nada disso parecia importunar os demais aventureiros, o grupo que sabia que, naquele dia, retornariam à vida. Ao contrário do corredor da morte, que condenava os habitantes para essa outra realidade (ao menos que o despacho fosse justamente ao inferno, mas nunca se sabia definitivamente), ao contrário, ali estavam no corredor que daria o viver. Era um hotel que trocava hóspedes constantemente, conforme a lista de chamada. Ali estavam reunidos os retornantes do dia 9 de junho.
Seguindo as combinações da última palestra, após o café da manhã, foram aos quartos pegar os kits para o salto. Olhou um retrato que ele mantinha sobre a mesa de cabeceira e sabia que seria a última vez que olharia para ele. Depois tudo seria esquecimento e novas linhas para páginas em branco. Dos corredores para a excursão prosseguia o vozerio avantajado, muy alegros, muy contentos. Pareciam colegiais rumo a um acampamento ou viagem de formatura.
Conseguiu um lugar à janela e foi observando a paisagem das nuvens, que estavam muito abaixo deles. No caso dos que brevemente reencarnariam, o passeio de ônibus era lá do alto e, no ponto determinado, todos teriam que saltar de volta para a vida. Segundo o instrutor alertara, os corpos ganhavam tanta velocidade que a mente se desligava e só voltariam a si nos braços médicos pelo nascimento. Ou seja lá de quem serviria de parteira na ocasião. Para alguns, o resquício do medo de altura, apesar de teoricamente mortos, o que reservava palavras de confiança, exaustivamente ensaiadas pelo instrutor, que, a bem da verdade, estava cansado de ver as companhias passarem e queria ele mesmo retornar à vida. Não era o melhor emprego que já tivera, pensava ele, apesar de não lembrar os que havia possuído em terra firme.
A nave dos reencarnantes se deslocava agilmente no tempo-espaço. O que eles sabiam é que todos ali chegariam ao nascimento em 9 de junho. Ele não conseguia lembrar a que signo correspondia essa data, mas ainda recordava ter nascido em dezembro. Um a um, os companheiros saltavam, animados. Havia breves rezas em diferentes crenças, havia recados de que nunca esqueceriam as esposas que mal lembravam o rosto. Havia o "papai te ama", vindo de homens que sequer sabiam o nome dos filhos (maldosos dirão que nem em vida sabiam).
Metade da espaçonave estava esvaziada e seu número foi chamado: - 112! - gritou o instrutor. Por um segundo, sua mente foi dominada com o intuito de ficar quieto e enganar o planejamento da natureza, as ordens superiores, há quem diga que de Deus. Mas percebeu os companheiros restantes, ansiosos, o encarando, alguns mais rudes já o repelindo por estar perdendo a jornada e atrasando a viagem dos comparsas. - Talvez eu não caia na casa certa, seu animal!
Não hesitou três segundos completos e já estava com um brutamontes aproveitando-se de sua condição física de vida passada, como um lutador de UFC, segurando-o pelo colarinho. Humorista que era, pensou que aquele talvez nem um caminhão atropelando para jogar para o hotel lá de cima. Mas de alguma forma havia morrido e estava pronto para, ao invés de matá-lo, caso fosse uma rotineira briga de bar, estava disposto a devolvê-lo à vida. A ironia era mais constante ali do que na Terra.
Conduziu-o até o instrutor, que agradeceu aos serviços préstimos.
- Vamos lá, meu rapaz.
- Tenho mesmo que ir? - tentou bancar a criança.
- Perceba que aqui ninguém morreu jovem, rapaz. Todos estão bem conscientes da responsabilidade. Hora de voltar.
- Lembro que gostava de quase nada lá embaixo.
- Bobagem. A ala do suicídio mofa um bom período no inferno. Voltam tão mal de aspecto que imploram para regressar à Terra.
- Não foi por falta de pensamento a respeito.
- Mas aguentou firme, não se matou. E agora é hora de voltar.
- Serei recompensado por não ter me suicidado?
- Isso nem eu, nem outra pessoa tem a resposta.
- Gostava dos jantares do hotel.
- Eu também gosto. É o que mais me alegra nesse emprego em que tenho que convencer, vez por outra, alguém a saltar.
- Lembra o que fazia na Terra antes de vir pra cá?
- Na verdade não.
- Mulher, filhos?
- Acho que sim... Não faço ideia. Tem aparecido cada vez mais homossexuais que lamentaram não se assumirem.
- Isso é triste.
- Demais. - Coçou a cabeça o instrutor, com o polegar na testa, em movimentos repetitivos. - Mas enfim, precisas saltar.
- Não quero mesmo.
- São ordens superiores, camarada, apenas as cumpro. Listagem, passageiros e horários. Estamos perdendo a sua janela e o com cara de poucos amigos que te trouxe até a porta para os salto está prestes a voltar...
- Parece que não tenho escolha.
Nesse instante, ele se precipitou para a borda, mas tomou um rumo inesperado. Puxou o instrutor pelo ombro, aplicou algo como um golpe de judô e fez com que caísse com o corpo inteiro para fora da nave. Apenas as mãos se agarraram com os dedos inseguros. O passageiro entre um olhar diabólico e um receio de reticente pena, disse:
- Sinto muito.
Pisou nos dedos do instrutor que foi voo abaixo para seu novo destino.
Notou que o instrutor havia levado a prancheta com os próximos nomes. Os incrédulos homens, que esperavam a sua janela em horário e local de salto, demoraram a reagir. O usurpador do instrutor se trancou em uma cabine. Tão logo trancou a maçaneta por dentro, ouviu o alvoroço daqueles que queriam o seu couro. - Não podem me matar! Gritou enquanto impedia que entrassem na pequena cabine com alguns produtos de limpeza.
Espiou por uma fresta que vários perdiam a paciência e saltavam para suas novas vidas. Só saiu da cabine após o silêncio que se seguiu. Dois covardes não tomaram coragem de saltar, nem de impedir que ele se dirigisse até o piloto. - Você tem medo de viver? - Perguntou ao condutor.
Na Terra, episódios esquisitos viraram notícia. Um repórter anunciava:
- Tivemos inesperados casos de gêmeos, trigêmeos e quadrigêmeos na nossa região. A maioria dos casos surpreendeu aos médicos, que, nos exames, não haviam constatado os múltiplos no útero das mães...
Em um dos nascimentos do dia, um bebê bastante curioso, que praticamente não chorou. O doutor aplicou-lhe algumas palmadelas para se manifestar como bom recém-nascido. Na mente do pequeno, apenas um pensamento, enquanto era acariciado nos braços e seios da mais nova mãe. - O desgraçado me empurrou do avião... Isso vai ser descontado do meu salário.
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