11/06/2020

esquece

O chamado pai de família estava lavando a louça após desfrutar da refeição preparada por sua esposa, casados eles há 30 anos. Naquele horário posterior ao almoço, a filha mais velha já costumava se retirar do recinto, porque o assunto declinava em nível. Segundo ela, era possível perder neurônios só de absorver o conteúdo inútil da conversa. Após falarem um pouco sobre a sogra do homem, a mãe da esposa, o lavador da louça então iniciava uma de suas histórias dos tempos de operário:

- Teve uma vez em que o Camobi lá em Rio Grande...
Mas foi o bastante para arrancar risos, em função do apelido do colega, referência a bairro santa-mariense. A mãe e o filho se entreolhavam e riam. Ele, de costas, de frente para a cuba de louças no aguardo, apenas ouvia os ruídos indesejáveis, que interrompiam o bom prosseguimento do conto.

- Enfim, o Camobi veio de conversa com o Dirso e...
Novamente os risos que lhe custavam o pingo da paciência, assomados com a pouca água em período de escassez de chuvas.

- Assim não conto mais nada. Não precisa saber. Esquece...
- Não, não, agora queremos ouvir o que houve. - Disse a esposa.
- Esquece. - Ele apenas concluiu e seguiu as batidas de leve com a louça que saía das cubas para o escorredor.

A mulher, entretanto, não era fácil de ser vencida. Quando queria saber alguma coisa, por mais irrelevante que fosse, ia atrás da resposta. Ainda por duas vezes ela insistiu naquele instante pós-almoço.

- Não, não, vocês não me deixam contar. Esquece.

Ela percebeu que tratavam antes de assuntos delicados, antes de recair para o ciclo de bobagens intermináveis. Intermitentes até que cessasse a louça no escorregador, isto quando não persistiam enquanto os pratos e xícaras e copos e talheres eram secos com o pano. Mas essa percepção aguçava a curiosidade da esposa, que agora estava interessada no que diabos os operários estavam tramando em Rio Grande.

Horas depois, foi no momento de ouvirem a televisão, após o jornal da tarde e antes do zapear por programas que variavam de carros antigos a casas nas árvores, quando não terminavam em gente pelada no matagal.

- Mas o que o Camobi tinha a ver com o Dirso? E com a minha mãe?
- Nada. Esquece. - Ele respondeu secamente e seguiu trocando os canais, à procura da melhor opção em HD.

Mas a dona era osso duro na queda e não se daria por vencida facilmente. Com uma memória impressionante, não deixaria a questão morrer sem um desfecho. O ataque seguinte foi após a janta, rechaçado com outro solitário e trissilábico "Es-que-ce".

Antes de dormir. Antes de cair no mundo dos sonhos ele cederia à vontade da companheira de três décadas e diria o que tinha a ver o Camobi com o Dirso - seja lá quem fossem - e isso resultaria com que ela dormisse tranquilamente, satisfeita com o desenrolar de obstante assunto. "Esquece", ele virou para o lado, enquanto ela permaneceu rija com o livro de cabeceira em mãos. Depois, não conseguiu se concentrar na leitura, nem pegar no sono. Precisava saber da história.

Nos dias seguintes, a cena se repetia. Era o marido mexendo no motor de carro e levando um susto com sua chegada repentina em momento de distração com tantos cabos, ligações e checagem dos elementos.

- O Camobi... - disse ela afinando a voz para um tom suave e despreocupado. - Ele e o Dirso, o que...
- Esquece. - Ele falou enquanto mudava de tarefa para verificar o óleo.

Ouviu ainda uma sequência de esqueces entre o jantar seguinte, um cruzamento entre os dois quando iam dar comida aos cachorros e finalmente em uma cena em que o marido achou bizarra a presença dela. A esposa o surpreendeu no box, no chuveiro, orgulhando Alfred Hitchcock pela influência direta na intervenção. O homem arremessou o sabonete para longe, abriu os braços, pensou que era assalto, seria homicídio, latrocínio ou qual fosse o nome que mencionariam no jornal, Antônio Vieira Santos da Cunha em letras garrafais, assassinado no banheiro da própria casa. Mas era somente sua esposa querendo saber da história do Camobi e...

E nada de arrancar resposta. Ela esperou os filhos saírem para tomar a maior das providências. A filha na casa do namorado, o garoto em um congresso da área dele na faculdade, fim de semana inteiro fora pela viagem. Aproveitou-se do sono pesado do marido, que nem precisava deitar para cochilar. Com a mão leve, tratou de amarrá-lo quando estava torto como uma vírgula sobre a poltrona da sala. Imobilizou pulsos e calcanhares, nós apertados e agora ia requerer a história dos tempos operários do já aposentado homem.

Ela, diabólica, atormentada, destroçada nos últimos dias sem dormir querendo saber daquela bobagem rotineira que seria incrementada ao cardápio do dia após mais um almoço, ela ofegante, olhos fixos, nem piscava, quase babava de sabor pela eminente descoberta e pela raiva que sentia do companheiro de mais de 30 anos juntos, somados os oito meses de namoro antes do casório. Ela com uma tesoura em mãos e as palavras pronunciadas em ameaça ao pênis do marido, que havia semanas que ele não utilizava senão para urinar. Ela com as antigas revistas Placar, ele colecionador, sentindo esse ameaço extra-corpório, aquelas revistas com Romário, Dunga, Alex Cabeção, Danrlei, Edmundo, Pantera e o favorito Túlio Maravilha podendo serem picoteados pelas pontas afiadas do instrumento cortante.

- Vai me contar agora, sem mais delongas, o que o Camobi havia falado com o Dirso e o que isso tem a ver com o assunto da sua sogra.
Pendurado de cabeça para baixo, ele com o suor que escorria na direção contrária ao que se costuma ocorrer em posições normais, o corpo fechado e retraído pelas severidade da situação, apenas conseguiu soluçar, em voz fina e trêmula.
- Agora eu que esqueci.

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