Esta aconteceu no bairro. Um relato que a vizinha pode muito bem utilizar no salão ou na parada do ônibus sobre a crescente da violência no antes seguro agora inseguro ninho em que ela habita. Este pode ser tomado como procedente do Oiapoque ao Chuí, como dizem. Creio que mais para o Chuí, porque na região comercial fronteiriça, é bem possível que algum brasileiro ou algum uruguaio se estresse por um par de crocs e gatilhos sejam puxados ou facas ganhem novos fins que não cortar peixes. Tendo o leitor preparado o terreno envolto de sua própria morada como cenário ou não, reafirmo que esta aconteceu no bairro.
A avenida serpenteava aquele aglomerado de casas pelos dois lados, o que torna o faroeste ainda mais improvável. Ao invés de rodas de feno e poeiras ao vento, circulavam por ali muitos carros, principalmente nos horários das 13 e das 18, na ida ou na volta. Entrecortada estava a avenida por um canelete de gramados verdes ao redor e vegetações rasteiras plantadas pela prefeitura há oito anos, mas que muitos viventes juravam que tornariam-se árvores "e frutíferas", acentuavam os injuriados pelo ato de lúgubre intenção.
Não crescendo os caules e as ramagens esverdeadas, toda a cena ficou exposta aos olhares de senhores e senhoras remendadores de fofocas, no parapeito de suas janelinhas de tão medíocres vidas. Não havia anoitecido faz muito e calor ainda fazia, portanto iremos induzidos que os últimos contistas desse drama estavam corretos e aquela aberração aconteceu por abril. Filando um cigarro do companheiro ao lado, um calvo senhor me revela que não passava das 20 horas, portanto havia baixado o vai e vem dos movidos à gasolina, álcool e diesel. Uma ou outra moto ainda esganava sua sinfonia para desesperar quem não queria perder uma mísera frase da novela do horário.
A câmera para o pátio frontal de algum vizinho capturara a cena e o calvo, já a meio cigarro, resmunga com o canto da boca que o morador do avanço tecnológico só cedeu as imagens para polícia. Nem a mídia pescou essa referência nas coletivas de imprensa, o que mantém a bruma da imprecisão sobre a hora exata. Mas sigamos. Um transeunte, alto pelos seus dois ou quase metros do dedão ao cabelo carapinha, passa apressado, passadas largas, diria o narrador Paulo Brito, e larga um par de crocs sob o curto sombreado de uma moita - talvez uma daquelas que prometeram crescimento paisagístico e não cumpriram.
Os sapatos eram verde-limão e tão resplandecentes que nem a rendição do dia em noite, nem o arbusto acima ocultaram a vista. Percorridos minutos, um morador da rua visualizou os abandonados e, interrogativo, girando nos calcanhares para saber se estava espionado, resolveu apanhar o par de crocs. O transeunte do cabelo crespo era tamanho que seu par de sapatos se assemelhava ao longe com um jacaré imóvel, facilmente receberiam o apelido de lanchas ou barcas pela vizinhança da velha guarda e, se fossem de serventia como um porta-cds, bem ali caberiam uns volumes no espaço para calçar.
O passista já se retirava do local com o novo presente para os pés, para andarilhar agora botinado em crocs, quando retornou de arma em mão o antigo dono, requirindo ainda o ser. "Larga isso aí, passa pra cá!", o cabeludo e barbudo e de gorro apesar de não estar frio entrou em polvorosa. Não conseguia assimilar naquele instante a violência de levantar uma pistola por um par de crocs. Tudo parou. Mesmo sendo morador de rua, só havia sido acusado de roubo duas vezes, as duas por total preconceito de mal intencionados a prejudicá-lo, fosse pela sua condição de sem-teto ou pelo estilo de seus capilares e vestimentas.
O nome do rapaz com a arma apontada para si era Jorge. O nome de quem apontava não sabemos. Jorge ficou em choque depois de tudo isso e foi respeitosa e religiosamente dormir em albergues da experiência aos anos que sucedem, hábito que ele nunca tivera antes. Naquele momento, é claro, começava o choque que o traumatizara. Nervoso também estava o trêmulo dono da arma, com os pés 44 descalços e reivindicando o par de crocs.
Jorge não conseguia reagir e nem devolvia os crocs nem corria com eles. Não saía do lugar, não emitia palavra. Seu algoz, entretanto, repetia as ordens perdendo a paciência, a sanidade, se é que possuía, e o que fosse. A arma era a lei no bairro mais uma vez. No terceiro grito, em tom de ultimato, com a mão a aprontar o que seria o disparo contra o peito ou cabeça, querendo nem saber do desfecho, foi a presença do velho Almiro que revirou o jogo.
Almiro era aposentado da polícia militar e podia ser facilmente reconhecido como ancião metido na quadra. Implicava por muito menos, podia-se dizer. Não tolerava as bicicletas elétricas, os skates e os gatos de rua. Não os diferenciava muito e, com a autoridade que ele se outorgava, podia muito bem resolver tacar pedras nos jovens bípedes que tiravam onda em horário inverso à escola ou nos quadrúpedes insolentes, que ele preferia era os cães e até comemorava quando algum dos felinos era encurralado por predador de rua.
Saindo da porta de casa, Almiro cuspiu no chão, rebolando autoritariamente a cintura, como se ainda fosse o manda-chuva da delegacia do distrito do outro bairro. Jorge pela primeira vez tirava o olhar da prateada pistola, desde que a conhecera, espécie tragicômica de amor à primeira vista. O outro não tirou o cano da reta do peito de Jorge, mas desviou brevemente os olhos para o novo personagem do enredo. Seu Almiro era baixo, atarraxado, um cabeça de prego que tomou umas marteladas para reduzir sua altura na casa dos 1,60, ainda menos com a idade. Quando servira na polícia, podia se orgulhar de alguma medição honrosa que lhe desse 1,65 para empatar com o Sol do Girassol da banda paulista Ira.
Almiro estava imóvel, confiante, pensando que lidava com algum filme western de Clint Eastwood, Kevin Costner, John Wayne ou Henry Fonda, cujas obras ele havia acompanhado desde a juventude e matava a saudade diante da televisão pela antena-gato da rede Telecine. Almiro tornou a cuspir no próprio gramado, na cena que era agora toda dele, iluminado pelo poste que oras vivia aceso, oras apagado naquela avenida importante, mas mal cuidada, como grande parte do bairro ou da cidade. O músico Dado Villa-Lobos ensaiaria tocar o tal João de Santo Cristo naquele interiorzão à espera de alguma ação, talvez heróica, talvez anti-heróica e sobretudo sem unanimidade pelas confusas versões que narrariam o fato. Sobretudo pelas diferentes opiniões sobre cada um dos polêmicos atores. O andarilho maltrapilho tantas vezes alcunhado mulambo Jorge, o vizinho rabugento, policial aposentado Almiro, e o sedento pelos crocs, homem alto dos cabelos carapinha de quem pouco o ex-policial ou os atuais policiais conhecem.
O bigode de seu Almiro, que o mantinha no melhor formato escovinha de barbeiro, tremeu sobre a boca que exigia uma desistência do arma em punho. Mas foi começar a frase que o disparo partiu, em repentina mudança de endereço. O estampido cortou o parcial silêncio da noite, interrompendo com um uivo doloroso a sentença a ser pronunciada. Almiro tentou se apalpar no local atingido, mas cambeleou dois passos bêbedos para curvar-se, ajoelhar-se e tombar-se na calçada que orgulhosamente construíra. Ficava irado cada vez que um cachorro a utilizava de banheiro, mas agora sangrava compulsivamente sobre a bem assentada obra.
Jorge provou parte de seu caráter indo em direção ao socorro daquele que provavelmente lhe salvara a vida, custando idosamente seu término na estatística dos jornais e rádios nos próximos dias. Quanto ao duradouro momento, inesquecível para esposa do seu Almiro, a filha adulta em outra cidade e tantas outros envolvidos, eis que o par de crocs ficou a salvo das mãos do atormentado Jorge, que ao menos conseguiu descongelar-se para o socorro de seu Almiro.
O verdadeiro vilão catou o par de sapatos verde-limão e arrancou para o trajeto de onde viera buscá-los, emaranhando-se no bairro de ruelas escuras e curvas, muitas de terra seca pela falta de chuva, chão batido de levantar poeira. Era veloz o homenzarrão dos dois metros, crocs 44, passadas largadas, saudoso Paulo Brito dos gritos de "feito". Quem ouviu o disparo e arriscou meter a fuça contra o vidro das janelas - nenhuma blindada, mas a curiosidade corre mesmo esses riscos - só viu o injustiçado Jorge ser acusado pela quarta vez, a segunda em raio de dois minutos.
Populares, por assim dizer, foram avançando cautelosamente, mas, ao depararem-se com os olhos arregalados de Jorge, que recuava para longe do estatelado Almiro, constataram que o homicida estava encurralado. Jorge tentava explicar e nada saía. Mesmo que saísse, não acreditariam nele, andarilho maltrapilho, mulambo que se arrastava. Esvaziou os bolsos do casaco que trajava mesmo não fazendo frio, porque conservava-o junto dele, para evitar que outros o deixassem até sem isso. Provou que não tinha arma, como poderia ter disparado um tiro?
Não se importaram, começaram a cercá-lo. A esposa de Almiro somente choros, a filha viria a saber da notícia só três horas depois, porque ninguém se animou a uma ligação antes. O velho já estava morto e quem corria riscos agora era Jorge. Jorge cerceado, que poderia fazer? Que moral lhe dariam para explicar-se? Crocs verdes e ainda iluminadamente em tons limão, que besteira! Era uma desculpa tão obsoleta que deveriam ter acreditado no desvalorizado morador das ruas. Quem saiu de casa depois disso, no vozerio, no coro crescendo e prometendo comer, via pelas ruas perpendiculares à avenida apenas as pegadas do par 44 do crocs e a poeira que subia como se fosse fumaça de fornalha.
Jorge foi hostilizado, mas a sorte jogou para seu lado em busca do gol de empate em 2 a 2 naquela fatídica noite de reviravoltas. A primeira sorte foi ter sobrevivido aos populares que lhe agrediam a chutos e pontapés, nome de banda portuguesa de apreço de meu amigo porto-alegrense Diego. A segunda onda de bem-aventurança no bafejo da sorte foi a câmera do vizinho ter captado a ação que acusaria o homem dos dois ou quase metros de altura. O do cabelo carapinha.
A luta pelo crocs ganhou os noticiários da televisão estadual e os produtores de notícia deixaram passar pelo gatekeeping rumo ao jornalismo nacional. Jorge era notícia no país inteiro. Quando conversei com ele, não muita bola para a fama em totalizados similares 15 minutos em rede brasileira. De cabelos curtos e barba de apenas três dias por fazer, Jorge conta que foi reconhecido por algumas pessoas nas calçadas que ainda frequenta. Recebeu uma alimentação melhor por cerca de 15 a 25 dias, até cumprimentos da Prefeitura em ação solidária, quando a prefeita sorria e ele ainda se recuperava de um roxo no olho esquerdo e uma botinada que levou no maxilar. "Tudo isso por causa do maldito par de crocs."
O dono dos crocs verdes não foi localizado. Os crocs, sim. Correspondiam à cor e tamanho 44 descrito. Também são daquele par o registro do recorde de maior velocidade atingida correndo de crocs. Pelas ruas de mal iluminado bairro. O criminoso foi um total debochado de ainda calçá-los para correr aquela curta maratona, tamanha sua certeza de êxito. Descalço iria mais longe muito mais rápido, bem se sabe. À procura pelo bandido do crocs verde seguiu por 30 a 40 dias, até ser esquecida pelo papel do periódico que circulava na região. As rádios escassearam de ouvintes interessados na bizarra história. A televisão nacional, como foi dito, dedicou apenas os singelos 15 minutos iniciais ao assunto. Nunca mais quis saber de Jorge ou de nossa cidadezinha, rompendo o silêncio sobre ela somente por alguma epidemia de crack ou aumento no roubo de gado nos distritos rurais do município.
Jorge parou de almoçar e jantar como inocentado após aquele mês de reverências a seu caráter e boa índole. Dos populares que o agrediram sem conhecer a história, apesar das imagens da câmera e saber-se que moravam todos perto, em raio de duas quadras do local, ninguém indiciado, muito menos preso. Almiro realmente bateu as botas naquela noite, ou seriam os crocs? A viúva se mudou para Santos, litoral de São Paulo. A filha mora a poucos quilômetros da cidade praiana e elas agora se encontram mais seguido. Logo procurarão um pretendente para a velha Sônia, que sente falta de uma companhia e já nem muito suportava o velho marido, bancado como herói por uns, estes mais saudosos da ditadura, e como velho besta por outros. Ah, se os gatos de rua falassem...
Quanto ao articulador do plano dos crocs, pontas soltas de perguntas que não querem calar. As teorias são as mais variadas. Uns rezam a lenda que os crocs verde limão 44 tinham alguma especiaria que o faziam supersticiosos, valiosos como se banhados em ouro. Muito refutável, mas dizem que os encontrados no lixo dias depois eram falsos, ou somente outras barcas resplandecentes que coincidem com o famoso par da história. Teorias que mais fedem para o lado do falecido Almiro dão conta que ele possuía muitas desavenças desde os tempos de polícia. Portanto, o plano seria muito bem articulado, o par esquecido propositalmente diante de sua casa, o andarilho Jorge, que passava pela rota daquele bairro seguidamente e por aquele horário, veria o par, acharia uma boa usá-los (mediu-se que seus pés eram 42). O assassino voltaria à cena incriminando Jorge, aproveitaria que o metido do Almiro trocaria nada por um bang bang daqueles e o fuzilaria ali mesmo, na calçada de que ele tanto gostava.
Uma bela versão, não é mesmo? A contestação viria pela bobagem de se tratar de um par de crocs o motivo daquilo tudo. Poderia ser um relógio brilhoso, uma joia, mesmo um casaco ou uma jaqueta de maior beleza, algo que interessasse a Jorge ou a outro transeunte desocupado para servir de laranja. Mas crocs verdes e não obstante verde-limão. Os insistentes da teoria relatada com maior aceitação pelos concidadãos creem que o uso do crocs verde limão se deu por chamar a atenção, enquanto peças menores poderiam passar despercebidas por horas ou mesmo dias, ou pelo menos até amanhecer novamente. Outra que Jorge era tido como bisbilhoteiro e tinha como lema que o lixo de uns é o luxo de outros. Caiu nessa cilada que quase lhe custou a vida.
Ficam ainda as pulgas por detrás das orelhas se o assunto com Almiro é velho caso de milícia, tráfico de drogas, problemas profissionais, rixa com facções, estranhamentos conjugais (dona Sônia deu no pé) ou o que poderia ser... Sobre o último dos deboches do assassino de seu Almiro, percebeu-se parte da ação premeditada quando a filha do velho estava se desfazendo dos pertences do pai, muitos doados para instituições de caridade, parentes distantes ou mesmo deixados na calçada onde tudo ocorreu, para que fossem civilizadamente (?) carregados por quem precisasse.
Além de muitas peças de roupa encabidadas em formato de bazar de garagem, havia várias caixas emparelhadas junto ao meio fio. Qual não foi a surpresa de um amigo de Jorge, aos olhares de curiosos vizinhos à luz do dia, quando abertas as estruturas retangulares de papelão notaram uma coleção de crocs: de todas as cores, das mais diversas... menos verde-limão.
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