Os muros, construções soerguidas ademais pela paranoia da timidez. Estamos sempre levantando novas estruturas que nos reprimem e afastam. Nesse exercício ensaiado a seguir, algumas relações das paredes muradas em quintais e a relação paranoica a elas atribuídas.
Antes de mais nada, recordo das memórias infantis em que, por uma determinada época, como muitas vezes minha mente pregou-me peças, eu desenvolvi uma sensorialidade para com as paredes pichadas e grafitadas, na época ainda não atribuindo a diferenciação entre piche e grafite. Tinha um verdadeiro pavor de ver as paredes assim. Quem diria que anos depois eu teria regulada paixão por fotografar e decifrar códigos nas mesmas? Mas, até então limitado de várias maneiras quanto a essas interpretações possíveis, o medo cobria-me como os traços e riscos cobriam aquelas superfícies urbanas. Algo na escola também transmitia isso, envolto com o fundo das salas repletos de manuscritos, o tampo das classes que terminavam o dia assim para trabalho extra às funcionárias e aos funcionários da limpeza. Isso muito me desagradava, sem dúvida.
Ainda em estágio de superação ao trauma mencionado, passei eu mesmo a desenvolver desenhos abstratos, geralmente monstros, sobre os criticados tampos das classes escolares. Desenhava em aulas tediosas ou ao terminar os testes, as provas, sendo impedido de sair para o pátio, para não perturbar outras salas ou discutir as respostas. Eram tempos para desenhos que muitas vezes apareciam no verso das avaliações. De qualquer forma, seguiria a discordar sobre deixar como vestígios essas representações que logo seriam apagadas. Mais serviriam castelos de areia à espera das marés do que aquele verdadeiro desperdício de meus materiais escolares e de produtos de limpeza da escola. Arte tão brevemente existente e logo censurada pela arrumação.
Pela cidade, as pichações e os grafites se multiplicavam. Certa noite na infância, sonhei que haviam invadido nossa casa e pichado as paredes dos fundos, todas brancas. Um pesadelo. Isto se deve a uma verdadeira situação em que algum jovem mal intencionado desenhou alguma besteira em vermelho na coluna que sustentava nossas grades da frente. Minha mãe obviamente enrijeceu com aquilo e tratou de limpar a panos o mais depressa possível. Ela raramente saía de casa, de modo que quando voltamos de alguma visita, a tinta ainda devia estar fresca e o responsável pelo tormento não muito distante. Mas não chegamos ao ponto de procurar com o carro no encalço de algum suspeito com lata de spray, canetas especializadas ou mochila com a qual pudesse esconder algum desses equipamentos. A limpeza foi feita e permanece intacta, com exceção de novas mãos de tinta propositais, provenientes de nossa manutenção. Em resumo, não houve outro incidente do tipo.
E, mesmo em sonho, eu não recordo de novo acontecimento a respeito, o que me agrada, pois há tantos problemas no mundo mais severos do que esse trauma que considero superado, caso me levantem a questão de perguntarem sobre. Porém, ademais das pichações ou grafites, os primeiros às vezes criminosos, às vezes heróicos das calles, os segundos muito mais caracterizadamente artísticos, ademais dessa situação, o assunto em pauta são a presença dos muros.
Também para o saldo de minha infância, esse cofre em que empilhamos tantas moedas e, ao rebentarmos anos depois, percebemos a inutilidade de tanta coisa que foi acumulada sem nexo. Ao menos assim muitas vezes me parece. Desbravado ao conhecimento o cofre da infância, analisado pormenorizadamente agora, de lupa, de lente de aumento, sob uma nova luz de lâmpada precisamente posicionada, vemos o enfileiramento de muitos muros que nos fizeram parte, como uma corrente de dominós, toda conectada. Os muros de minha casa tinham um papel protetor fundamental. Quantas vezes ouvi minha mãe contar da vez em que, logo aprendendo a correr, após caminhar, eu menino disparei portão para fora em direção ao meio da rua, correndo imenso risco de ser atropelado? Quantas vezes ouvi? Mas tudo me passou bem, dentro daquele possível, me aperceberam naquela situação fragilizada e recolheram-me o mais depressa para casa, sob duras palavras, que jamais lembrarei, e safanões e promessas daquilo não se repetir. De minha recordação, não se repetiu. Não, nada de tamanha ruptura aos portões guardiões de minha intacta segurança residencial.
Certa vez lembro de ter aberto a porta à noite sem verificar o chamado olho mágico, que provavelmente eu nem alcançara com minha altura à la pigmeu. Tomei outra série de duras e safanões nas palavras de minha mãe, que voltava de um de seus passeios, este na companhia de minha vó, tia e outras pessoas de convívio familiar. Abrir a porta, antecipando a chegada de meu pai, foi o ato irresponsável da vez. De fato, era crescente a violência do fim dos anos 1990 e início dos anos 2000.
Sobre a primeira escapada, a pelo portão da garagem lateral aberto, com idade que não me recordo, somente sei da história por repetirem a narrativa do perigo daquele acontecimento impensado. Havia o risco do atropelamento na movimentada avenida que cortava o bairro e também esse risco de rapto e recompensa, logo pensava eu na época, na minha tentativa de estabelecer sentido a essas situações. Anos depois, nessa nova ótica empírica, atenciosa sobre o cofre desmembrado da infância, é que nos damos conta de perigos maiores, aqueles que muitas mulheres ainda sentem ao saírem em psicológico inseguro para rua. Aquele crime mesmo. Esse que estás pensando. O crime que talvez mais gere debate sobre a pena ou não de morte e que, eu em absoluta conduta geral contra, até me inclino a concordar com as pessoas mascaradas de tochas, em busca da condenação maior ao infrator imperdoável. Quando se trata de uma indefesa criança, então...
Dos muros de casa para os da escola. É como relembrar a primeira vez que nossa mãe nos deixa aos cuidados de terceiros, geralmente uma pedagoga, uma terceira, uma chamada "tia", que você aprende com os colegas de pré-escola que é como deve chamá-la. Eu não chorei. Lembro e contabilizo pouquíssimas vezes em que verti lágrimas publicamente no ambiente escolar. Não chorei, mas recordo que pensei que aquilo demoraria um longo, longo tempo. Tive razão e não tive. Foram tardes inacabáveis? Foram. Mas delas agora pouco me lembro ou interferem de como estou finalmente aqui. Cada uma delas, em específico? Muito pouco a acrescentar. Da Marlene que cuidava a porta e faleceu às aulas de religião que eram sempre as mais tardias do turno vespertino, em que as crianças faziam as atividades de qualquer jeito enquanto eu me dedicava talvez em empatia e complacência com a esforçada Rosângela, educadora que pouco atraía nossa descortinada atenção.
Dos muros da escola, poucas vezes ultrapassados a pé pelas ruas centrais, recordo quando aguamos as plantinhas que enfeitavam o canalete ao lado. Um de nossos colegas deixou cair o baldinho para aquela torrente água suja. A professora até hoje deve incluir em suas preces o agradecimento por não ter sido o desatento amigo a ter despencado daquela possivelmente mortal altura. Nos espremíamos pela estreita calçada e até nos comportávamos, pensando hoje, sob a ótica diferenciada no cofre da infância. Em outras vezes rompíamos aqueles muros rumo a excursões maiores, como passeios a museus biológicos ou históricos, ao exército, a passeios rurais e fazendísticos. Mas sem o perigo de cair um outro balde ou criança dentro da vala do canelete.
Para os últimos tempos dessa vida, já recolhidos os cacos do observatório empírico da infância, a lembrança dos muros após o impacto da canção "muros e grades" dos Engenheiros do Hawaii. Impactante saber que a famosa Revista Billboard incluiu a canção entre as mais inteligentes de que se há ouvido falar, o que me orgulhava e felicitava pela banda, dona de vasto pedaço de meu coração musical em apresso. Nem parece que hoje um ex-membro se dedica a defender o pior presidente democraticamente eleito da história do país; quiçá do mundo. Mas enfim. Os muros e as grades nos protegem de quase tudo, mas o quase tudo quase sempre é quase nada. E o que nos protege de uma vida sem sentido?
Paranoico na destopia famosa do 1984, quando Orwell previa o formato dos reality shows mais famosos do planeta, lotados de edições ano após ano nos mais diversos países, campeões de audiência ainda no Brasil, mesmo passados mais de 20 temporadas do começo. Esquisito nos meus hábitos e costumes, seguidamente me pego pensando como seria se eu fosse pego nos meus hábitos e costumes. O jeito como me olho ao espelho, como invento coreografias, como seco as mãos carregadas de suor, raciocino estranho, mirando para o nada, visto a camisa primeiro pela gola, depois pelos braços, tudo isso para ser julgado e, modisticamente falando, cancelado pelos plantonistas que veriam minhas imagens captadas pelas câmeras. Ruim pensar como é a rotina de um animal em zoológico. Suas limitações de habitat, de espaço, sua existência confinada somente para deleite de quem pagou ingresso e espera que mexa-se e faça truques. Pior aos de circo.
Pelo caos pandêmico do ano de 2020, encontro-me saboreando a visão dos muros de meu quintal, estes, de minha nova morada, mais baixos do que da casa que sempre habitei. Fico exercitando a paranoia mais do que meus magros braços. Com a paranoia me coloco a pensar se estou no campo de vista do casal de idosos vizinhos, como se estes não tivessem também coisa melhor para fazer. Acontece que eu, desprovido muitas vezes de coisas melhores por fazer, observo por frestas o topo de suas portas, a de saída da casa principal e a da área destinada ao lazer. Enxergo a copa das árvores, da parreira e sei de cor (com ou sem acento - HA) algumas das roupas deles, dependuradas no varal, em bambus cujo o topo estão captados pelo meu campo de visão. Não consigo evitar vê-los. Vou para o quintal e presto atenção nesses detalhes sob o céu azul ou cinza. Observo o telhado das casas e divago para o máximo que esse horizonte me permite: três ou quatro casas vizinhas, algumas árboles na paisagem e um dos prédios mais altos da cidade, onde moram muitos jogadores do principal clube local, isso bem adiante. Usufruo desse espaço para tomar sol, garantia de vitamina D para os detentos da quarentena.
Como os muros aqui são mais baixos, o alcance da voz dos vizinhos, inclusive o timbre insuportável do garoto menor, neto deles, chega aos meus ouvidos. Tímido que sou e ressalto, me esforço para minha caixa de pensamentos, mais ou menos suicidas, mais ou menos homicidas, mais ou menos distópicos, fiquem comigo e com o papel e não em voz alta. Perdi o medo das escrituras nas paredes em pichações, mas permaneço interiorano ciente de que as paredes têm ouvidos. O sábio rapper Black Alien de Niterói avisava que no confinamento as paredes são páginas de cimento. Babylon on, Baby.
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