O motorista do aplicativo uber que me levou tinha mais ou menos a minha idade. O penteado com bastante precisão, raspado dos lados com um topete, uma elevação ao centro, moda das baladas sertanejas ou de outras festas. As bochechas salientes, os dentes frontais adiantados de maneira a quase escaparem da boca, tornando seu aspecto mais infantil. Os olhos idem, confirmavam, animaram-se com minhas puxadas de assunto.
O motorista do aplicativo uber da ida era gaúcho de Flores da Cunha, cidade à qual ele não sabia situar exatamente ao mapa ou indicar a região pertencente. Tentei auxiliá-lo com meus conhecimentos geográficos. A verdade é que havia ido embora cedo da região e há algum tempo se dedicava na função de transportar passageiros pelo meio tecnológico de chamada. Dissertamos sobre a qualidade de vida local e como o nosso estado era violento em demasia se feita a comparação com o roteiro turístico onde estávamos. Apesar disso, ele relatou experiências de assalto sofridas por ali mesmo. Ambas enquanto se deslocava a pé, sem o fiel companheiro das viagens atuais. O celular, entretanto, ficou pelo caminho nas jornadas que narrou-me. Também dividi meus casos como se estivéssemos a abrir potes e sacarmos sanduíches para o desfrute de um piquenique sobre um gramado e uma quadriculada toalha qualquer.
Perguntou se eu gostava de música eletrônica. Eu neguei e meio que entendi qual era a dele. Tocou Gorillaz - Feel Good Inc e gostamos. Ele aumentou o som e elogiou a música do projeto do ex-vocalista do Blur, Damon Albarn. Os motoristas por ali são bem agradáveis no sentido de instruir os turistas e demonstrarem que as opções de lazer noturno são bem variáveis de uma maneira eclética, um cardápio multiplicado às diferentes preferências.
Enquanto falava na variedade de pessoas possíveis e na ascensão total do número de argentinos na localidade, relatou ter aceito uma chamada de um passageiro do país islã ou algo assim. Refutei a hipótese pois islã não é um país. Ele disse que era tipo islã. Islã é a religião, conforme eu expliquei para ele. Nisso, resolvi chutar alguns nomes de países do Oriente Médio e predominância do islamismo na fé de suas populações. Era nenhum desses, ele negava ocultando os dentinhos que lhe davam um aspecto juvenil. Lá pelas tantas, pela associação do começo das palavras, perguntei se não era Israel. Isso! Era Israel. Justo o país que não tinha o islã em predominância, mas sim o judaísmo, na fundação após a segunda guerra mundial. Mancada dele. Espero que tenha aprendido essa.
Apesar dos deslizes, fez por merecer as cinco estrelas de avaliação para mantê-lo com uma nota bastante satisfatória, próxima do topo. Gremista, bastante atencioso, ele me deixou no local em que uma rápida subida na íngreme rua estreita me levava ao destino na praia.
Durante a noite, o motorista do aplicativo uber que me levou tinha mais ou menos a minha idade. O cabelo também curto, como era escassez de cabeludos nas localidades, muito em função dos argentinos terem totalmente abortado essa ideia nos últimos anos, passando de geração para geração dos nucas descobertas. Eu contrastando. Este tinha olhos espertos, mas tranquilidade para encarar o pesado trânsito em que mal nos movíamos. Isso resultou em um assunto bem desenvolvido. Ele gostava de falar, então usei a tática de deixá-lo em seguida assumir o controle da conversa.
Talvez tenha sido algo que eu disse sobre ostentação. Como as pessoas estão dependentes das redes sociais para tudo, mesmo nos momentos de aproveitar ao ar livre, diante de belas pessoas ou paisagens. Estamos para dentro do mundo virtual, fotos, legendas, fiscais da vida alheia, stalkers dos outros ou de nós mesmos. Obviamente não elevei tanto o papo a esse ponto, mas fiz sim a minha crítica a respeito e ele fisgou a pescaria.
Este era gaúcho de Porto Alegre e vivia ali há alguns anos. Pai médico e ele também com a vida sendo ganha a partir de hospitais, mas em outra função. Relatou a chegada dele ao paraíso, meses torrando a grana que tinha, podendo dispor do que de melhor tem os destinos de festas e rotas locais. Só teu Deus pode saber o que tanto pode ter aprontado, ainda mais relatando que não viera só e outros companheiros estavam pelo espaço, desbravando experiências e novidades. Só as portas cerradas das noites para o interior das entranhas no que as paredes viram e muitos certamente esqueceram. Outras coisas se lembra e não se esquece jamais.
Demoramos para sair rumo à estrada mais movimentada. Uma infinidade de carros por todos os lados. Vertigem aos desacostumados. Loucura aos sãos, sanidade aos loucos. Ele repetiu o trecho de que ali se encontrava diversão para todas as tribos e a diferença e os rótulos não combinavam muito. Falou por sua preferência de música nacional, do samba ao sertanejo, mas que assistiu a showzinhos de rock em outra noite e curtiu pra caramba. Falou que a tal da ostentação vinha de fora para ali e poderia morrer em alguma barreira. O povo local já estava acostumando, tinha seu próprio modo de vida. Uns se escondendo, outros se mostrando naturalmente, assim são as pessoas. Algumas aparecem demais e outras querem apenas fugir dos holofotes, agora eu quem concluo.
Escondido por trás dos vidros com insufilm, mãos aos volantes e identidade desconhecida. Ao longe, somente o brilho dos faróis na dificuldade para se identificar com qual carro ele dirigia naquela escuridão das noites, nosso motorista aqui falou e falou sobre sua vida. Contou sobre as experiências de chegar ali, achar que tinha certo domínio, que possuía alguma coisam seja conhecimento ou materiais, mas, do lado de fora dessas portas de vai-e-vem da chamada vida, estar sempre em descoberta e em constante aprendizado.
Viu gente muito mais endinheirada do que ele, nenhuma surpresa para mim ele se tocar disso, tamanha a ostentação que nos aparecia ao redor. Relatou, na parte mais surpreendente da conversa, sobre uma garota com quem saía e se dava bem, que os amigos dela tinham muita grana. Possivelmente ele se deparou com outras vertigens, com outras inseguranças, com outras incertezas, com os mesmos enjoos nos sintomas que conheço. Que um desses amigos dela, vejam só, ganhou um posto de gasolina para administrar de presente aos 18 anos. Você aí brigando contra os centavos do litro de derivado do petróleo que não para de subir em preço e o cabeça lá virando de adolescente para adolescente mais velho com o domínio de uma instituição que te vende isso e fatura e lucra e tem de tudo na vida, tão fácil e tão cedo. Influência dos pais, fator de herança, desmonte aos teorizadores das oportunidades iguais e da meritocracia.
Ele disse que, apesar de ter as coisas em casa (e aqui se constata que nada deveria faltar para ele), as constantes broncas da família impulsionaram ele a "trampar", como repetia, e buscar o seu próprio espaço e os seus próprios ganhos; isso o felicitava. O trabalho dele no hospital rendia o suficiente para dividir casa com amigos e ir levando; ter o carro e o carro gerar mais esses trocos nas corridas de uber, três ou quatro corridas por noite e cofrinho e caixa 2 para farrear quando bem entendesse. Um bom método de vida, assimilei. Boa sorte a ele.
As ostentações locais ele minimizou, daí o que considerei que era fácil para ele, na sua classe sempre média para alta deparando-se somente com a alta condição de vida. Moleza para ele estar à vontade nesse universo, redoma de vidro. Convivendo ou buscando conviver somente com a high society para aliviar a loucura cercadora, porque a pobreza ainda se esconde por esses becos e pelos vendedores ambulantes e caroneiros e pedintes oprimidos por olhares ou pelas mais severas forças resguardadoras policiais. Gente que nem uma corrida de uber conseguiria bancar. E celular com internet para isso, será? Só teriam acesso ao ônibus dos quase cinco reais para rodar terminais e tentar vender a arte ou convencer turistas de que um almoço pode sim ser necessário e imprescindível. Convencer de que a fome existe, não importa onde, que os estômagos vão roncar caso não comam. Parece incrível que isso aconteça ainda aqui, não é mesmo? Mas acontece.
Outra parte surpreendente foi o motorista revelar seu método de poupança, afirmando que tem em casa uma corrente de ouro, que, sempre que pode, vai aumentando sua massa com mais peças, valorizadas pelo mercado e pela eminente raridade do visado elemento da tabela periódica. Mantém ela trancada e quieta por lá e com ele carrega apenas uma correntinha ao pescoço. Discreta, pouco chamativa mesmo.
Mas novamente ocorria o deparar com a tal da ostentação capital. Mudam as capitais, algumas coisas mudam e outras não. Ao terminar minha viagem com o motorista da volta, entrei para os terminais e catei o ônibus indicado rumo ao centro. Ao conseguir uma boa vaga para ir sentado, o trajeto foi preenchido com as palavras de um outro condutor, que tinha mais ou menos a minha idade. Este não dirigia, andava de ônibus com um violão nas mãos e covers na cabeça para atrair a atenção de um disperso e variado público, entre as pessoas muitos idosos. No repertório dele estavam Djavan, Tim Maia e um bem recebido, requisitado e aplaudido poema do gaúcho alegretense Mário Quintana, que me tornou reflexivo o suficiente para quase chorar já sem o filtro de meus óculos escuros entre meus olhos e a janela do ônibus.
A menina ruiva impecavelmente bonita na poltrona à minha direita também não ajudava, inacessível de tantas formas nas nossas diferentes e imaginárias redomas de vidro. Uma Titi Müller em beleza com seus amplos fones de ouvido e um mundo a ser desbravado por outro alguém em outra oportunidade. Falou com uma senhora que talvez sua mãe, talvez sua tia, talvez sua amiga mais velha. Será que prestou atenção nas canções do cara do transporte coletivo, este trabalhador tão jovem e com duas filhas para sustentar?
Será que ela convive se esquivando dos às vezes diferentes às vezes iguais motoristas de uber? Será que a ela nada disso interessa? Só ela sabe o que passava dos seus grandes fones pretos para dentro da cabeça, por baixo dos balizados cabelos ruivos. Eu mal via seu rosto refletido pelos reflexos da noite nas janelas do ônibus. Havia as luzes da cidade no alto dos apartamentos ou nas propagandas fluorescentes pelo shopping; shopping onde aquela vez estivemos, eu e outra distante, e depois daquela vez eu soube da morbidez das pessoas que lá se suicidavam. E isso me deixava confuso como confusos já eram meus sentimentos antes desse acréscimo de informações sobre o ponto de encontro na praça dos consumos. Na avenida/estrada que seguíamos eram carros, carros e mais carros ao redor, acrescendo e fomentando o resplandecer cego daquelas luzes todas. Loucura aos sãos e sanidade aos loucos. Quais enquadrados ao primeiro caso e quais enquadrados ao segundo? Juntos e misturados no iluminódromo delirante.
Quando chegamos ao destino final da trajetória programada do ônibus, as mulheres à minha volta agarraram-se às sacolas e não perderam tempo refletindo sobre tudo aquilo. Zarparam porta afora. Enquanto isso, o músico estava satisfeito com os trocos recebidos naquela viagem, uma em quantas que ele fazia em único dia? Tinha as filhas para sustentar. Guardara o chapéu e se deslocava pelo terminal rumo ao próximo ônibus, sem dúvida, voz e violão em prontidão para buscar o ganha-pão daquela oportunidade. Mensagens positivas de suas frases para aproveitar o que temos. E eu saí daquilo tudo, próximo do destino final da rodoviária com tempo de sobra e falta de opções para encerrar o dia. Fiscalizei as redes sociais, que eu criticava mas não necessariamente desgrudava delas naquele retorno. Esperei partir o próximo ônibus dos mochileiros e sacoleiros à minha volta para finalmente deixar o terminal. Pedi uma ou outra informação e rodei a catraca para fora.
Caminhei cabisbaixo, mas não o bastante para evitar a visão: diante de mim estava o amigo que não consegui encontrar antes naquela noite, pois ambos ficamos presos no trânsito e no horário. O destino quis que nos víssemos antes de minha partida derradeira na rodoviária. Ele, que morava próximo àquele centro, reconheceu-me, nos reconhecemos e convidou-me para aproveitar aquela hora. Fomos à cerveja mais próxima. Era a ostentação que ali eu precisava. Dependente de outros transportes, era esse o combustível para eu ir além.
30/01/2020
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