28/01/2020

ainda não

Foi um erro grotesco de planejamento. Na hora poderia usar um termo mais amigável como equívoco, mas de fato foi um erro dos mais graves. Deixamos o local da hospedagem e rumamos para onde não sabíamos exatamente. O periódico ser de férias e a então não exigência de cumprir horários nos davam a liberdade de escolha a seguir relatada.

Apesar disso, minhas ideias não estavam sendo acatadas pelos demais ocupantes do carro, meus familiares. Meu pai ao volante com minha irmã como co-pilota à frente. Eu ia com minha mãe no banco de trás, em uma representação de família norte-americana, quase de propaganda de margarina, caso fôssemos um pouco de cada mais bonitos para os rígidos padrões televisivos. Mas éramos uma família em viagem, em deslocamento pelo Sul brasileiro. Voltar algumas cidades parecia tarefa fácil, mas a escassez de lugares para almoçar foi se tornando um verdadeiro tormento aos irritadiços passageiros.

Nunca aprendemos a ficar calados quando deveríamos. Nem o apresentador de tv e ex-jogador do Corinthians Neto pôde ajudar na hora. Ele que, com um vídeo inesperado, como a maioria dos seus que acabam viralizando na internet, havia comentado emocionado sobre a morte do astro do basquete, o nascido na Filadélfia, Kobe Bryant. Ele falava da relação entre os familiares e que o pior, nessa ocasião trágica de morte, era estarem brigados. Isso fazia um dia. Nem 24 horas, o vídeo eu divulguei aos demais familiares na noite passada. José Ferreira Neto concluía sua oratória com pena era da menina menor, sobrevivente por não estar no helicóptero. "Os vivos é que sofrem".

Nossas discussões ao longo da estrada se acentuaram, cada qual com sua versão, todos mais importados em falar do que ouvir aos outros. Juízos diferentes do que seria melhor para o almoço, se a quilometragem estava ok para ser atingida ou nós não daríamos conta de tamanha espera. Se precisavam ir ao banheiro ou suportariam mais tempo de rodovia até o inalcançável almoço. O que iniciava como um acoplado de sugestões se tornou incompreensível e descontrolado. Debate acalorado e sem precedentes. Vozes elevadas, desrespeito. A indecisão de meu pai ao volante, como costuma dizer que não pode dirigir e cuidar as placas todas, mas, quando fortemente questionado, afirmava que era ele quem estava ao comando. A contradição fez com que errasse uma ou outra rótula, com que entrasse em uma das saídas e só depois perguntasse a opinião dos outros. Isso foi o estopim do que desencadeou o maior desentendimento. Não rolou prosseguir assim. Atacamos o que de defeito havia nos outros, esporte em que sou medalhista, digno de vergonhoso pódio. Diga-me um defeito e observadoramente te darei três. Palavras machucam. Palavras contam muito, diferente do que alguns insistem em dizer que apenas gestos, pura baboseira. Palavras ficam ruminantes na mente, em inesquecível momento de como e por quem foram pronunciadas e com qual objetivo e a dúvida se foi somente um instante de cabeça quente ou uma verdade antes guardada a sete chaves e que termina por emergir como uma erupção vulcânica, imparável, aceleradamente devastadora no corroer o que está pelo caminho.

Descemos em uma opção, mas estava lotado de caminhões em frente ao restaurante. Não sem antes percorrer mais muitos quilômetros, descemos em outra opção, mas, apenas após o mau humor das batidas de portas, verificamos que era buffet livre em valores que pagaríamos nem em dois dias de buffet na balança, um prejuízo ao bom senso financeiro. Minha irmã foi a mais irritada e bateu rudemente a porta na volta, ameaçou ficar pela estrada. Discuti que ela queria se aparecer com tal ideia idiota. Todos ameaçamos não irmos mais nessas improvisadas viagens de férias, refutando as virtudes e escancarando os defeitos alheios. Só vendo o lado negativo desses tempos em família.

Após muito bate-boca, o silêncio reflexivo nos atingiu de forma até então inesperada. Isso sim parecia fora do extenuante planejamento. Cada qual dos ocupantes ocupados para dentro de suas mentes. Minha irmã esteve a fingir ou até conseguir o sono com a cabeça encostada ao duro banco da frente do carro. Meu pai com as mãos firmes ao volante, sem querer mais opiniões externas, mas sem dúvida estava pensando algo além das formas de ultrapassar e manter-se na estrada rumo a algum lugar para o ainda inconcebível almoço. Minha mãe talvez novamente era quem estava na maior sintonia com minhas ideias, embora nessas horas nós ajamos diferentes. Ela muito querendo impor suas opiniões e eu tentando o equilíbrio, mas me descontrolando quando meu apaziguar e minhas soluções - as que considero bem fundadas - não resolvem. Respiro para dentro de minha mente, o oceano que estava em maremoto. A mente produtora e reprodutora de confusões e agressividades erigidas.

Enquanto meu pai manobrava um de seus retornos, engata ré, desengata ré nessas paradas inúteis, pensei que tamanha confusão dentro de um carro em meio a um trânsito tão agressivo e a se depender dos motoristas de fora, tudo isso formava uma receita mortificante. Em alguns momentos anteriores da viagem, me deparava com a presença apressada e ansiosa da tal da morte, a encapuzada constante. Isso seja pela tia alcoólatra ou pelo tio diabético que sofre já a cegueira de um dos olhos e luta em saídas do interior rumo à capital para combater a falta de visão do globo ocular que lhe resta. A morte se desenha sempre sinuosa, é como algumas das estradas que enfrentamos. Estradas que não sabemos enfrentar. Somos despreparados em agressividade contra nossos habituais escudos, que nos protegem afetiva e financeiramente no dia a dia. Somos estúpidos com eles. Pecado esse que qualquer religião ou mesmo quem tenha religião nenhuma está para julgar. É a autossabotagem - palavra da moda - humana contra si mesmo. É a bituca de cigarro que polui em dezenas de milhares de unidades os litorais por Brasil e mundo. É o uso indevido da água. É esquecer o protetor solar. É esquecer de nossos protetores. É esquecer do vídeo do ex-jogador corintiano José Ferreira Neto, natural da paulista Santo Antônio da Posse, apresentador da rede Bandeirantes.

Não estamos de posse, não entendemos. Nem a posse da verdade definitiva, nem a posse propositiva sobre a opinião do outro. Não estamos. Ao findar esta viagem, tento esquecer como as minhas ideias foram negadas, negligenciadas nos acontecimentos entre aportar aqui ou ali, almoçar lá ou acolá, fazer ou não fazer algo por falta do tempo que nos escorre entre os dedos, tal qual a música Depois de Nós, do acústico 2004 dos Engenheiros do Hawaii. Lá se vão 16 anos deste álbum. Lá se vai outro dia deste dia que aqui conto.

Naquele silêncio reflexivo com um gosto mortuário na boca, traço uma análise do que cada um de nós podia esperar. Pensei que não seríamos, nenhum de nós, as mais lamentáveis vítimas de um acidente, isso perante os nossos objetivos restantes nessa passagem - chamada vida.

Meu pai que perde irmãos, minha mãe que só tem uma irmã e mãe a dela - minha avó - que já está próxima de partir em função da idade avançada. Os quase 40 anos de casados deles, meus pais, uma marca impressionante. Trata-se aqui de pessoas muito úteis nos afazeres uma com a outra, que se completam de trazer a comida a quem cozinha, de quem pega no volante a quem lava as roupas, de quem espera o fechamento da refeição à mesa para atracar o barco da louça pelas cubas do refeitório. Eles se completam e, ao que parece, estão com missões parcialmente concluídas por aqui. Senhores avanços e aprendizados em suas personalidades, apesar de muito se comportarem como meras crianças em muitas das vezes. Dos humores às partes sérias. Como seriedade e rigidez eram os tons naquele funesto momento.

Minha irmã, assim como eu, nunca se envergonhava em recitar seus descontentamentos com a vida e teria nenhum problema em sepultá-la logo ali que fosse. Voltar para nossa cidadezinha cada vez mais detestável era uma ideia que a ela mortificava em tese. Uma verdadeira droga depreciativa pelos quilômetros que nos separavam do retorno às avenidas com buracos, casas antigas e pórticos do que não queríamos ler. Ela artista, ilustradora, de capacidades intelectuais das mais elevadas para uma média nacional e mundial, ela que pouco interesse tinha em nutrir maiores participações em nosso belo quadro social, como nos agraciaria em versos o músico Raul dos Seixas.

Permanecia eu entre essas pessoas que não seriam a maior tragédia se irem dessa forma, unidas na desunião que nos separava mentalmente, cada um no sub-mundo de suas turvas e submergidas ideias, uma forma irônica de despedida pra quem convive, planeja e des-planeja tudo em conjunto. De minha parte, para que juntasse os nossos cacos como restos comuns, nada me agravava naquele momento pensar em partida definitiva. Eu com razoáveis escritos, uns publicados, uns manuais, uns por pouco visível e desconhecido blog, um ano de publicações em jornal impresso, o duplicar e o rumo a triplicar a centena de jogos de futebol transmitido pelas ondas do rádio na amplitude modulada ou na internet. O poder que aos jovens fúnebres é concedido por meio de homenagens e interesses pelas peças que até ali puderam ser construídas, pelo que era prodígio e esgotou-se e acabou-se. Uma das maneiras de manter-me fora desses pensamentos mais negativos, do fim da linha, do fim da estrada, da luz do fim do túnel, que pode ser muito bem um caminhão na nossa contramão, 22,5 metros, veículo longo, placa de aviso na traseira, caveira da morte pendurada no espelho retrovisor central, uma das maneiras é pensar na fonte longe ainda abundante do desenvolvimento das mais estapafúrdias, maleáveis, irretocáveis ou irreconhecidas ideias, o brotamento do inédito, o desenvolver do excêntrico, o colorido das novas perspectivas surgidas dos confins do inexplicável menu da mente.

Assim, torci para nos mantermos sempre ao lado direito da pista que avançávamos e para não nos chocarmos com a contramão, com algum caminhão ou mesmo que fosse um veículo leve acelerado, daqueles que nos cortavam o som nas rápidas passagens à nossa esquerda. Torci para a iluminação não estar somente nos braços de meu compenetrado pai, mas nas mãos firmes de tantos e tantas heterogêneos motoristas, nossos desconhecidos pelas estradas. Torci para o asfalto nos conduzir a outros lugares, para, em algum lugar ao Sul, o almoço daquela terça-feira esquisita. Me deparava precisamente na imprecisão daquele gosto de 'quero mais nada', mas de 'quero mais', de logo adiante, de fundo de poço mas luz por cima. Aquele gosto de luz do sol para clarear pensamentos e não de caminhões na contramão nos trevosos túneis. No fundo daquele poço, que não é o definitivo rebaixamento dos poços por ora escavados, só havia o caminho de escalar para a ribanceira do sequenciar. Não era nosso fim de estrada.

Nenhum comentário:

Postar um comentário