21/01/2020

horas de ócio

Necessitava a operação de transferência bancária e as agências, as contas eram de bancos diferentes. Por sorte ou não, o capitalismo agia ali com as concorrências frente a frente, como muito ocorre em zonas gastronômicas ou boêmias. Para uma economia de 10 reais, supostos 10 reais pelos cálculos ligeiros, nas transações, preferi atravessar a movimentada avenida de entrada da cidade para acessar as entranhas da concorrência vermelha e branca. Notemos aqui que não havia uma mísera apagada faixa de pedestre para os tantos idosos que para ali se dirigiam nesse ir e vir, às vezes estacionando de um lado da via e tendo que se deslocar ao outro lado. Nem uma esquecida pelo tempo e removida pela durabilidade ineficaz das tintas faixa de pedestre. Para inaugurar as frustrações por vir.

A preocupação com os itens metálicos dessa vez não se fez obrigatória. Entretanto, havia deixado o celular e os óculos escuros no porta-luvas do carro como precaução a esse momento desagradável, a separação dos imprescindíveis objetos por alguns segundos da eternidade do atravessar da porta-giratória. Melhor ficar minutos longe deles do que aqueles impassáveis segundos de tensão mediante o olhar implacável do segurança do banco, vestido em trajes policiais estrangeiros. Um azul mais para os Estados Unidos com calças também azuis, mas mais escuras. Um colete à prova de balas e um rádio comunicador sabe-se lá com quem das ordens superiores, inferiores somente a Deus, que está acima de tudo, assim como o país na vigência governamental. Mas o uniforme, dentre outras coisas, são, sim, subordinadas aos United States of America.

O totem de senhas é o nervosismo impossível de ser driblado, após a travessia graciosa pela porta-giratória da agência. Você continua como o protagonista, para os olhos dos entediados clientes esperantes e sedentos por novidades, por exemplo, o número da ficha que retiraram. Eles ficam como animais enclausurados a mirar sua destreza de operar a máquina digital e sacar o papelzinho comprovante para a indeterminada hora que for chamado. Logo você será um deles, não esquente.

Lembrei-me da ocasião em que um sujeito se revoltou com a porta-giratória e o detector de metais e foi sacando o que tinha dos bolsos e sabe-se lá mais onde, até que resolveu sacar sua calça jeans para provar que queria apenas acessar o banco para seguir sua vida. Na hora nem me dei por conta do exagero do episódio, passado há anos, mas que felizmente jamais se repetiu. Não a esse tom.

Dessa vez, em seguida ao me dirigir ao lugar de espera que, em uma rápida busca em olhar teleférico panorâmico pela sala, considerei mais agradável e apropriado, ocorreu outra ocasião dessas, mas em um episódio evidentemente mais brando, ainda bem. Antes é necessário frisar que a escolha pela poltrona lá ao canto foi equivocada, pois haviam limpado o banheiro e me remeteram às limpezas feitas por meu pai em casa, quando exagerava consideravelmente na quantidade dos produtos de limpeza e faziam o odor do banheiro limpo se sobressair ao anterior sujo. Detalhes que muito afetaram minhas recordações olfativas, tanto em casa quanto neste infeliz e transitório episódio bancário.

Enfim, dessa vez ninguém cometeu atentado ao pudor ficando apenas de roupas íntimas perante os demais, mas um cabeludo parcialmente desarrumado das vestes aos capilares, entrou meio perdido, provavelmente, assim como eu, sem ser cliente daquela instituição; se deparou com muita má vontade diante do totem de senhas, resmungou balbucios com o segurança e um dos poucos atendentes, o mais próximo, e saiu com mais impropérios. "Vou depositar é porra nenhuma" e provavelmente mandou alguma abstração divina se fuder ao sair da agência pela mesma porta-giratória que há segundos o havia introduzido para aquelas entranhas exageradamente limpas e polidas e regradas. Isso mesmo, inclusive com o cheiro permanente e nauseante dos produtos de limpeza com as melhores falsidades cítricas do mercado alvejante.

Observei de minha poltrona (que senhor elogio chamar aquelas cadeiras parcialmente desconfortáveis de poltronas!) o ritmo crescente e exponencial do número de carecas à minha frente. Nesse fenômeno, os velados assuntos predominantes nas esquerdas brasileiras: o machismo e o racismo. Havia, sim, uma funcionária ali - ao passo que depois descobri mais duas no corredor interno para meu depósito - e havia somente uma cliente senhora de meia idade. Depois brotaram outras madames de idades avantajadas, mas o pleno predomínio era de homens. Homens velhos vítimas mais cedo ou mais tarde da diaba calvície que neles fazia moradia em processo erosivo. Me senti jovem, embora agora relatando saiba que logo serei eu ali, assim como me tornei uma das bestas a observar como os demais usavam o maldito totem de senhas. Aquele totem que, não obstante sua utilização assustadora para nos permitir processos que nem bem entendemos, ainda por cima vibrava, se balançava ao ser tateado, como uma criatura debochante e apenas cravada ao chão, mas não totalmente fixa. Se assemelhava assim em algo como um joão bobo ou bonecão de posto de gasolina. Fiquei a mirar e porque não torcendo para alguém virá-lo em um desastre constrangedor a todo mundo, dos funcionários aos clientes, entre sorrisos amarelos, voluntários para reerguê-lo e chamem o gerente.

O gerente devia estar com os minutos contados para cair fora dali, porque o horário avançava e a tarde logo se encaminharia ao final dos atendimentos. E nada de mim, um dos últimos ali da turma da minha "primeira chamada". Agora a absoluta maioria das carecas depositadas à minha frente, nos diferentes formatos de nucas, a maioria grisalhando-se, era dos que chegaram mais tarde do que eu ao banco. Umas poucas senhoras em seus vestidinhos também marcavam presença, embora em minoria. Uma delas vestindo-se suavemente em traje para o elevado bafo de verão que fazia do lado oposto ao uso do ar condicionado, muito se assemelhava com uma camisola, um pijaminha azul.

Um senhor de chapéu foi atendido por um funcionário mais velho do que o anterior, que era um moreno de aspecto indiano. O velho de chapéu e o atendente se cumprimentaram efusivamente, repetindo saudações de como era prazeroso e satisfatório se verem de novo. Era enojador como uma troca, um cambio financeiro entre o funcionário efetivado e do, quem sabe, proprietário rural, ou aposentado em casarão em bairro escondido às margens do arroio? Enfim, isso, essa relação os fazia muito bem. Era prazeroso e satisfatório, como faziam questão de recordar e transmitir a todo àquele ambiente estapafúrdio. Com cheiro de alvejante sanitário.

Após essas calorosas saudações, baixaram o tom da voz para falar do que realmente o levava até a agência e daí passaram a não querer que as demais pessoas ouvissem. Sensatos, apropriados, diriam. Deixei-os para além da existência e passei a me concentrar a outros grupos um tanto quanto irritantes. Os seguranças que nada faziam paravam a conversar com um ou outro uniformizado que adentrara o recinto. Sorrisos e tonterias que contrastavam com a angústia da impaciente espera dos portados nas "poltronas".

Esperava mais algum aguardante rebentar-se assim como o do "vou depositar porra nenhuma". Algo que tornasse toda aquela inação em um formato mais cômico. Talvez só para maldosamente estragar o sorriso debochado dos uniformizados. Aqueles que adjacentes ao vestíbulo de nossas dores estavam externos, alheios, nem aí aos nossos inquietantes sofrimentos. Não fosse o ar condicionado estaríamos subindo nas cadeiras como chimpanzés ou talvez mesmo arremessando-as loucamente.

O tempo se arrastava em gestos de impaciência, que ilustravam melhor do que qualquer caminhar vagaroso dos cíclicos ponteiros. Um dos carecas coçava sua parte superior desprovida de pelos. Uma senhora com um lenço contra a testa para enxugar alguma possível teimosa gota de suor, apesar da refrigeração ambiental ajustada. Uma ou outra síndrome de pernas inquietas. Um pé que calçava e se descalçava para evitar cãibras. Um dos seguranças, afastado ao animado papo de colegas, mudando a posição de onde dirigia a visão, cruzando e descruzando o par de braços. Quem levou o celular como fiel companheiro, olhando alguma novidade na tela de desbloqueio, talvez nem desbloqueando, apenas para conferir as horas ou alguma notificação. Outro, mais antigo, da ampla velha guarda presente, estendendo elegantemente o braço esquerdo e pousando olhar no pulso coberto por um relógio ajustado ao seu manequim. Como um pássaro que virava e desvirava os olhos, eu estava ali, por vezes querendo atrair alguma atenção. Espreguiçar sem abrir completamente a envergadura dos braços. Pequeno bocejo que acompanha o ato. Conferir e des-conferir a senha, 8004, enquanto outras unidades acompanhadas de zeros faziam a transição na tela em led.

Quando finalmente fui chamado, não pude deixar de notar como os olhares voltavam-se a mim. Como na vez em que defendi tiros livres em conquista no futsal municipal. Como na vez em que passei em vestibular e, na chamada oral, desci arquibancadas rumo às mesas centrais para prestar a inscrição na Universidade. Foi como nesses vezes, mas o meu prêmio era ser atendido, economizar 10 reais, pelo ligeiro cálculo, em relação à transação direta por caixa eletrônico. Esses 10 reais economizados me custaram hora descrita de abismante espera.

Ali estava eu conferindo pela última vez aquele pedaço de papel cuspido automaticamente pelo velho totem eletrônico, que ninguém derrubou, para minha pena. Era o 8004. Oito mil e quatro. Sim, era. Levantei-me. Até meio desengonçado nessas horas, sempre quero ir o mais rápido possível, para evitar invejosos de minha obstinada e chegada e derradeira hora. Como nas inúmeras vezes em que é minha vez no banheiro de festas ou bares, quando muitos ébrios estão quase fazendo o que estão loucos para fazer. Caminhei trocando as pernas, quase desaprendido e desgarrado de como se deve caminhar, tamanha a milenar demora que me separava de meu santo atendimento. O oásis, a conversa com a devota monja que me atendeu rapidamente. Durou menos de dois minutos o efetuar do depósito, sem a mínima dúvida. Estava pago o frete que eu devia na loja virtual. Quase dois meses depois. Quase duas horas depois do início dessa odisseia, do atravessar da movimentada avenida, que nada tem de faixa de pedestre diante dos movimentados bancos, em que pessoas vão umas quase diariamente, outros, pelas idades, pelos chapéus, pelas mãos enrugadas, pela quantidade de remédios que tomam, pelos nomes em desuso atualmente, que são motivo de deboche pelos jovens, pelas carecas, sim, as carecas que se multiplicavam, esses deviam ser mais respeitados. Uma faixa de pedestre me bastava para retornar ao meu carro e cair fora dali. Do outro lado da avenida, uma mísera faixa, pintura em branco naquele acromático asfalto. Nem precisava de uma banda tocando instrumentos de sopro, clarinetes e saxofones e trambones, bastaria uma faixa de pedestre sob meus desgastados sapatos; nem necessitava ser um tapete vermelho digno das passarelas mais fotografadas e replicadas em portais em todo o planeta, nada disso. Nada disso.

Uma faixa de pedestres após toda essa inércia e obviamente eu não pararia outra hora, quase duas, para descrever o aprisionamento pontual e diário dos bancos pelo país.

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