03/02/2020

as formigas

Vivia abatumado de seus dias, em uma cansativa mas monótona rotina. Com a insônia que lhe habitava, pendia madrugadas na dúvida se o melhor era se recostar para dormir logo, mesmo correndo o risco de virar-se e virar-se sem efetividade, ou esperar até que a distante terra do sono lhe abatesse. Possuía também a dúvida se gostava era de experimentar o mundo inovador dos sonhos ou achava que neles perdia tempo de novas conquistas, como metas de leitura ou mulheres com quem falava.

O certo nisso tudo é que o relógio era programado para a manhã seguinte e o trabalho no banco privado teria de ser feito no dia posterior. Nisso, ele acordava com aquele som metálico, automático e, ao contrário da firmeza e exatidão da máquina, tateava todo errado para bloquear aquele som repugnante. Tropicava arrastando os chinelos e dava um jeito de melhorar o aspecto externo ao tomar um banho, o que nem sempre funcionava para o seu corpo adquirir a tal da boa vontade.

Se confundia um pouco com o molho das chaves, que não eram muitas, mas lhe exigiam muito do cérebro. A bem da verdade nem se sentia mais vivo como se sentia há alguns anos. A terapia o ajudava, mas custava um tempo, que ele nos turnos matinais dos bancos e com a somatória dos cursos que se inscrevia na esperança de fomentar um currículo melhor para sua área de formação na universidade, hoje não desprovia. Preferia usar melhor seu tempo livre no apanhado de discos que comprava. Alguns vinis sabe-se lá de onde vinham, mas chegavam após as encomendas travarem-se um bom tempo em Curitiba. Sejam as nacionais ou internacionais, mas Curitiba aumentava a ansiedade dele em 110%. Ao chegarem as novidades dos antigos rocks clássicos, música folk e até alguns sucessos alternativos ou indies mais recentes, ele botava para escutar, posicionando cuidadosamente a agulha sobre aquela extremidade, com a ternura de um tatuador caprichoso. E o arrancar musical daquela estrutura rodopiante dentro da vitrola o colocava em boas sensações, aquelas cada vez mais raras para a sua cansativa, porém monótona rotina.

E como contávamos aqui, ele já nem se sentia mais vivo (salvo esses raros momentos). Se sentia era como uma peça em um tabuleiro incontrolável que a nada levaria, a não ser a derrubada sua e das outras peças, de uma maneira inevitável. Ainda por cima pensava que os verdadeiros estrategistas, enxadristas desses jogos complexos eram simplesmente pombos prontos para os chutarem aos montes, isso quando não cagassem por cima das casas daquele grande palco quadriculado.

Esperando ou não sua vez de cair fora do tabuleiro, ele nunca tomava coragem para pedir as contas e encerrar suas atividades. Assim seguia em modo automático tomando os mesmos ônibus, quando possível, sentado nos mesmos lugares, que acostumava e até se irritava quando um estranho ia alocado em seus humildes aconchegos, nem tão longe da saída, nem tão perto da entrada, com visão segura para os demais passageiros. Uma ou outra moça a ser observada, mas a libido menor do que em outros anos. Todavia, era mais interessante olhar para as nucas daqueles passageiros e passageiras sentados à sua frente do que olhar as quantidades monetárias de alguns deles no serviço entediante do banco. Eram horas que custavam a passar e ele sabe que aquilo custaria um rombo na sua conta de horas proveitosas quando os pombos agissem derrubando a todos. Imaginava, na mente fértil, que o banco passaria por uma poderosa corrosão e haveria desespero de acionistas, depositantes e, é claro, obviamente, dos funcionários e funcionárias sôfregos pelas demissões em massa. Ria sozinho com a ideia e realmente não se importava caso aquilo ocorresse. Não se sentia imerso nem levando a sério aquela função, pois era tudo um jogo de tabuleiro em que, peão, iria ser defenestrado, arremessado daquele universo para outro, que também já não lhe apetecia pensar qual. Ele nunca obtivera maiores respostas e cada religião e cada religioso tinham versões alternativas sobre o destino.

Esses devaneios eram extensões, o sonhar acordado quando não estava se preparando para o próximo episódio dos custosos sonhos dormindo. Custosos pela demora em novamente pegar no sono, naquela passagem, transição de terça para quarta, quarta para quinta e o brilho no olhar do final de semana. Ao invés de ouvir discos em casa, talvez passaria a sexta em um bar ou pub temático, algum show ao vivo, banda local ou convidada de outra cidade do interior. Maiores eventos naquela cidade eram raros. Além de raros, muito caros. Seu lidar ansioso preferia investir nos discos por conta própria enquanto isso, sem esperar o trabalho burocrático e vagaroso dos produtores para confirmar concertos. Esses serviços Curitiba nenhuma cuspia nas entregas de sedex ou correios. Até a produção se clarear, ele já teria ouvido muitos e muitos sucessos de seu interesse, não se importando muito com os preços, mas sim com a qualidade daqueles novos produtos cujo até o cheiro de recém-saídos da loja e o plástico-bolha que os envolvia felicitavam. Aquilo eram momentos que ele valorizava tanto quanto outros podiam aproveitarem-se de um café bem passado ou do folhear álbuns de fotografias valiosas, cuidar de flores em um jardim ou uma boêmia sem culpa. Tempos difíceis para cultivar esses belos hábitos. Ele tinha os discos.

Foi em certa tarde de segunda-feira que, já para o final daquele turno vespertino, em casa e na companhia coincidente de uma xícara de café e uma cuca, percebeu caminhar por seus ombros duas formigas, uma em cada ombro. Afastou-as intrigado pelas presenças. Não lembrava de vê-las pelo chão ou pelos cantos. Até conferiu na dispensa da cozinha outras danadas, mas não ocorreu naquele dia. Talvez o doce da cuca ou da geleia. Talvez.

Na manhã seguinte, acordou com mais três formigas em seu colchão. Ficou horrorizado pela ideia de poder ser atacado enquanto dormia. Já havia pensado nisso havia anos, mas nunca se concretizara tal situação hiperbólica de seus pavores. Mas estava acontecendo. Acabou com essas três e revirou o colchão e jogou as colchas para o chão, os lençóis idem. Precisava se livrar daquilo tudo.

Resolvia se chamavam serviço de dedetização ou não. Resolveu esperar mais um pouco. Na ida de ônibus, em seu ombro, mais uma delas. No assento ao lado, raridade estar vazio naquele dia útil, via outras subindo. Ou será que desciam? Ele parecia o centro daquela desgraça. Voltou para casa após afastar mais quatro da mesa do escritório: havia uma subindo pela caneta, outra num porta-lápis e as últimas só bisbilhotando pelos seus papéis.

Em casa, foi direto ao armário verificar suas roupas. Passou cabide por cabide, gaveta de meias e de cuecas para concluir espantado que ali nada havia. Na dispensa da cozinha, conferiu novamente, tampouco havia. Se perguntou se alucinava, se o grau dos óculos estava correto. Alguma coisa motivava aquelas aparições. Enquanto ainda delirava nessas indagações, a coisa se agravou por sentir na pele a subida ou descida de mais algumas. Tomou dois banhos naquela noite para não deixar sombra de dúvida. Na água, viu que meia dúzia dos insetos se afogavam em direção à saída do ralo.

Procurou um médico com consulta dali a dois dias. Enquanto era atormentado pelas formigas na espera de quase 48 horas, ao desembarcar na sala de espera para o consultório, ficou aliviado, com nenhuma coceira no corpo. As próprias picadas pareciam nem existir quando diagnosticado. O médico entendeu nada do que se passava. Ele estava entre o alívio e a apreensão de continuar com isso e não ser entendido. Foi pegar o ônibus de volta para casa que notou novamente o caminhar daqueles pequenos monstrinhos, organizados na aparente desorganização.

Marcou um café com uma amiga que não via há algum tempo. A companhia dela também, apesar de todo o açúcar que depositava no café, afastava aquele mau agouro. Nada de formigas naquele açúcar com café, como ele brincava, não café com açúcar, tamanha a quantidade adocicada. Enquanto na solidão não se livrava delas, reparava que, na chegada de outras pessoas, aqueles intrusos em miniatura desapareciam. De forma forçosa, conseguiu reagir contra aquela situação. Pegou pela agenda do celular, em diversos números no aplicativo para chat, e reuniu pessoas que não via fazia tempo. Apesar de ser recluso, aquilo lhe concedeu uma melhora. Preferia a companhia humana às formigas sobre seu corpo. Disso não tinha dúvida.

Foi um solavanco pesado para mudar um pouco sua rotina. Passou não só a observar aqueles passageiros de ônibus como a puxar conversa com alguns. Também foi mais atencioso e até afetuoso com os atendidos no banco. A experiência das formigas, que ele mantinha como lembrança mesmo após meses (e nisso passariam anos sem esquecer), fez com quem recordasse algum valor à sua posição naquele maldito tabuleiro. Não eram os pombos que o derrubariam ali, ou até seriam, mas não agora. As enviadas formigas, que saíam dele para ele próprio, essas é que precisaram ser derrotadas naqueles angustiantes momentos.

De vez em quando ele ainda acorda meio estranho tateando o despertador no celular. Encontra uma formiga, pega com os dedos como pinças, sorri medonhamente para elas e as encerra mortas em lixeiras ou no próprio vaso sanitário. Elas também estão por ali no banheiro, nos lugares que escolha no ônibus ou até nos retratos que conserva da família na mesa de escritório. É difícil livrar-se delas. Por via das dúvidas, o dedetizador afirmou que o problema não era o espaço ali, que nada encontrava. Percebeu, ao fim desse tragicômico episódio, que ele mesmo precisava combatê-las. Por mais que ainda surjam, tentava renovar as promessas de que só voltaria a encontrá-las quando fosse de forma derradeira, na posição horizontal permanente. Quando os pombos, ah, os malditos pombos, quando esses agissem...

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