06/04/2018

Habeas mentem

Enquanto luto por meus barões e meu sustento mensal com a direção da rádio, tudo se desenvolve no país. A aflição, a expectativa, o suspense, os conflitos. Não menos inquietante é aquela situação na sala da direção geral. A tarde se alongava e eu procurava direcionamentos e, quem sabe, alguma definição.

- Está acabando o prazo. - De repente o diretor se manifesta. - O Lula vai ter que se entregar. - Sobre o mandado de prisão ao ex-presidente da República acusado por um imóvel de área pouco, mas bem pouco mesmo, maior do que a propriedade conseguida por meus pais. Um ex-ferroviário da estatal e uma funcionária pública do Banco do Brasil, sendo a classe dos bancários sempre muito atingida em relação aos maléficos banqueiros nacionais e internacionais.

O resumo da reunião é que eu preciso empreender. Prender clientes e mamar de suas tetas. Estou aceitando essas jornadas, no que pode ser feito para meu sustento. Enfim, saindo dali a pé, ainda no prédio, topo no elevador da sede da rádio pela primeira vez em meses com alguém com quem eu dividiria o elevador por algumas horas, sem problemas. Ela se mostrou simpática. Talvez em alguma chance ou nuance, concordaria comigo. E concordaríamos juntos. Estava perfumada e tinha belos cabelos escuros. Nossa simpatia durou a descida de 11 andares rumo ao térreo. E, após cumprimentar o porteiro, seguimos nossos rumos. Sigo protegido pelas ruas com meus óculos escuros e a bebida da proteção das noites anda bastante ausente, para falar a verdade. Vai-se mais uma noite sem sua presença no logo mais.

Vou rumo à descida do centro, oposta ao palco da final do Campeonato Gaúcho no domingo. Para o outro lado, para a outra descida. Preciso comprar nos camelódromos um fone de ouvido que me isole bem o som das torcidas para decisão. Será o melhor para poder trabalhar nesse barulhento jogo. Ouvir os repórteres e os retornos do plantão. Vinha trabalhando com o fone de ouvido branco de meu celular, o que é deveras inadequado. O isolamento do som é péssimo e acabo passando por surdo perante os nossos amigos ouvintes. Hora de um fone novo.

A primeira banca não me agradou, percorri um pouco do labirinto de lojas fechando naquele fim de tarde de sexta-feira até encontrar um garoto que me parou. Pelo chamado do mais velho, o nome dele também era Henrique. Carlos Henrique, ele explicou, mas não gosta de Carlos e prefere ser chamado como me chamo. O mais velho de boné aba reta, com todo um estilo que ganhou os espaços no Rio Grande do Sul - mais comum ainda em Porto Alegre, talvez - me indica outras opções de fone de ouvido, os headphones. Assim como o da primeira loja, ele pensa que é para jogos de computador, mas explico que são para transmissões esportivas.

Ele se empolga, diz que não costuma ouvir rádio, mas que poderia acompanhar. Foi muito simpático, realmente um bom vendedor. Comprei dele e me agradei do produto pela proteção aos ouvidos. Pareceu tudo ok. Quando ele testou o fone com a música de meu celular, reconheceu a canção. - Nickelback. - Grupo canadense.

Ele, gremista, se empolga descrevendo o lance da expulsão do lateral-direito Eder Sciola do Brasil de Pelotas na final do Gauchão. Eu discordo do cartão vermelho, mas ele justifica, gesticula, comenta e emenda até um "como se eu fosse o Arnaldo Cezar Coelho comentando". Uma figuraça. Me despeço dele, que descubro pelo nome se chamar Isaac. Cumprimento também ao Henrique na saída. Quase me perco novamente no labirinto de pequenas lojas, mas encontro a saída.

Pela Floriano, novamente passo por um comício, por uma manifestação do Partido dos Trabalhadores. Estão revoltados com a ordem de prisão contra Luis Inácio. Justo ele que encabeçou as palavras do diretor da rádio no primeiro parágrafo. Diferente da direção da rádio, que meio que mandou eu trilhar meu caminho com seus suportes mais básicos, aqueles reunidos em torno do microfone, queriam Lula solto. Queriam Lula candidato, onde lidera as pesquisas de primeiro e de segundo turno. Queriam Lula sem pagar uma pena que os candidatos, que os políticos de outros partidos não cumprem por acusações mais sérias, como malas de dinheiro, lavagens enormes, helicópteros com droga e corrupção dos mais diferentes níveis. Distintamente de quando desci a rua na ida, na volta uns manifestantes ocupam o centro da via. Os carros ficam trancados. Enquanto uma companheira discursa, muitos buzinam. Buzinam e buzinam, atrapalham a fala - o que deveria ser um dos objetivos, além de querer passar. Finalmente liberam os que estavam presos na quadra, mas dão a ideia de manifestantes, na figura de alguns mais jovens com cartazes, bloquearem a via lá na esquina adiante, fazendo com que os motoristas obrigatoriamente desviem o trajeto, liberando o trânsito e, ao mesmo tempo, mantendo o protesto no meio da rua.

Identifico poucos conhecidos. Em especial, uma conhecida. Outros vou ver que estiveram através da internet. Se distanciando do pequeno mar de bandeiras vermelhas, hoje mais semelhante a um arroio, em outros tempos verdadeiro Atlântico (Pacífico não!). Saindo dali, seguem os comércios no mesmo ritmo. Homem gritando ofertas DE PREÇOS IMBATÍVEIS ao microfone da frente de uma loja, talvez de sapatos, não olhei. Pessoas apressadas para pegar o ônibus, estudantes de mochilas, senhoras e senhores, muitos com fones de ouvido. Outras prestações de serviço funcionam normalmente. Manicures concentradas, pessoas em uma lancheria, onde a televisão também mostra bandeiras vermelhas e quase me provocam sorriso e riso.

Ali perto é onde eu corto o cabelo, o Marcos, apesar de seguir trabalhando, talvez aplaudisse o protesto. Não sei. Outra mãe leva três crianças pequenas, provavelmente na saída da escola. Nas saídas das escolas residem o caos no trânsito, quase maior do que o protesto. Pais perdidos, em busca de estacionamento e de reconhecer os seus filhos em meio a tantas crianças barulhentas. Outros pedem dinheiro na esquina. Carros de firma passam. Outros mofam dentro de veículos à espera dos compromissados que logo vão vir. Os parquímetros funcionam normalmente.

O país não se comporta bem como um organismo. Mesmo próximo a seu coração, aos órgãos mais vitais, ou centrais, muita célula deve continuar se comportando na normalidade das demais instituições listadas. Pessoas escondidas atrás de suas mesas de trabalho, sentadas nos bancos da praça, buscando os filhos na escola e buzinando nos entroncamentos do trânsito. Nada de anormal num fim de tarde de sexta. Na distante frieira, também algumas coceiras, mas nada de anormal. Ó, povo que anda de ônibus, que vende e que compra nos pequenos comércios, que entope de carros as ruas dessa classe longamente média, que acha caro o ingresso da final do estadual, ó, povo, se tu soubesses o que eles aprontam e inflamam contra ti, não seria só um arroio de bandeiras.

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