"Ele não sabia se inventava ou se sonhava"
Em "A Pista" - curta-metragem de Chris Marker (1962)
E não é a mesma coisa?
A obsessão aproxima tanto a singularidade que a suprime, a esfacela, objetifica a pessoa amada.
Passa a se conhecer mais a obsessão do eu-lírico/ narrador do que as reais condições, pensamentos e opiniões do ser idealizado. Quem está do outro lado? Como reage e se manifesta a tudo isso?
"A memória de um tempo duas vezes vivido"
Em A Pista, um homem é submetido a experiências de laboratório após a deflagração da terceira guerra mundial. A expectativa em polvorosa na Europa deveria ser grande para projetar essa realidade ficcional em pleno 1962, alguns 17 anos após o término da chamada segunda. O homem viajou no tempo nas experiências dos cientistas. Voltou ao passado para uma forte imagem de mulher na infância, algo que lhe conferia paz em meio a tempos bélicos.
Também foi projetado ao futuro, quando uma nova espécie de civilização rejeitava o que hoje consideraríamos civilizados, pois eles enxergaram esse tempo passado como sendo formado por bárbaros. Com somente um componente, uma caixinha de energia, o narrador confere que o viajante no tempo-espaço poderia alimentar toda a indústria humana daquele período do século XX.
A memória de um tempo vivido duas vezes surge como última lamentação daquele homem condenado a experiências, lembrança de Marker de um período recente em que os nazistas usavam seus prisioneiros como fontes de experimentos macabros. Apesar de ter a oportunidade de vivenciar acontecimentos como testemunha em dois tempos, o homem selecionado pelos cientistas, e portanto protagonista do curta, não passava de um mero instrumento para os experimentos de viagem no tempo.
E a nossa mente? O que nos assegura, sem podermos nos transportar em matéria a outros tempos, quem nos assegura que o passado assim foi como lembramos ou que o futuro assim será? Nos resta apenas a construção tijolo a tijolo do tempo presente, por mais cansativo, paliativo e mórbido que possa parecer, é o que nos existe. Será?
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Quanto à obsessão do homem em A Pista, me recorda ao filme que assisti recentemente chamado "A Erva do Rato", um nacional com toques machadianos. A obsessão do personagem interpretado por Selton Mello pela mulher interpretada por Alessandra Negrini também anula as singularidades dela. As singularidades físicas dela são fotografadas dos mais variados e aproximados ângulos, mas me refiro às singularidades no sentido de como ela se sentiria, aprisionada e sem familiares, naquele ambiente estranho, usada para as concepções de fotografia que ele, antes e depois ainda solitário, projetava em laboratório de revelação de fotos.
Ela que no diálogo inicial, um dos poucos do filme, revelara ser professora. Mas quê tipo de professora? O que poderia ensinar e para quem? Anulada e escanteada, trancafiada em uma casa pelo obsessivo parceiro que lhe prometia os mais recatados cuidados até o fim de sua vida. Que assim se encaminharia em sequência do filme.
Em A Pista, posso pensar numa duplicidade de significado para esse nome entre a pista, como a de aterrissagem de um avião, que a banda uruguaia La Vela Puerca promete infinita, a pista entre o primeiro toque das rodas que já é passado, o caminho contínuo que é presente e o ponto de frenagem que nos é futuro. Ou podemos pensar no caminho do voo (aéreo) que aborda maior trajeto para essa metáfora. A Pista também que nos fica é sobre os segredos da mente humana, que apenas revela pistas, sem sua totalidade - inalcançável, impossível. São negativos de fotografias não revelados. A Pista também é deixar apenas pistas sobre quem era a mulher da obsessão do escolhido cobaia dos laboratórios subterrâneos de um mundo devastado pela radiação. E o risco da radiação desde 1962 que permanece como risco em 2025.
Sem ser o assunto principal em A Pista, minha interpretação baseada em vivências recentes confere as dúvidas do quanto uma situação é realidade e o quanto são projeções somente, projeções que anulam as manifestações legítimas de outrem; pessoas com direitos democráticos de pensar e des-oprimirem-se. Desopilarem. Fugirem das pilhérias aprisionantes que um pode formatar como armadilha.
Em A Pista, existe a mulher projetada nas visões, a quem quase nenhuma informação temos, mas também o homem aprisionado como cobaia pelos cientistas, do qual, embora rato de laboratório, sabemos o que ele pensa e projeta, afinal, é parte da transposição da experiência. Relatórios anotados.
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