25 de Junho, um tremendo dia cinza. Resolvi para sair um pouco do apartamento caminhar com minha mãe pela praia. Fazemos o mesmo trajeto, agora que o inverno nos impede um caminho mais confortável pela areia. Há muito vento e as partículas atacam-nos. O dia de hoje reúne o tempo cinzento e muita ventania. Perde-se nas belezas naturais menos envernizadas pelo sol e ganha-se na solidão da praia, propícia a caminhadas reflexivas e menores distrações. Ou também é possível distrair-se por mais tempo com elementos banais.
Ando sempre procurando os contrastes das paisagens e sociedades. Ou esses elementos encontram-me mesmo quando estou distraído, não estando à procura deles. De qualquer forma, a primeira cena que me chama atenção é quando dobramos da avenida principal à beira-mar em direção à passarela de madeira que circunda as dunas. Uma viatura da polícia estadual contorna a avenida de acesso à praia rumo a que corre à beira-mar. Penso em nossos trajes encapuzados e minhas mãos soterradas aos bolsos, me avaliando em razoável atitude suspeita. A polícia segue seu trajeto, almoçados ou não, naquele começo de tarde. Adiante, na vazia passarela, os primeiros que encontramos estão justamente atuando como a polícia desgosta: fumando baseado. São dois rapazes. A erva mais me atraia do que repulsa, mas minha mãe sei avaliar de forma contrária. Entretanto, é isso que me chamou atenção. Nem um minuto atrás vislumbrávamos a viatura policial. No minuto seguinte, estão ali os meninos a emaconhar-se tranquilamente. Como atuam as forças repressivas policiais em casos como esse? Fingiriam que não veem ou atuariam sobre os meninos, de forma mais truculenta/violenta? Fico sem a resposta, mas é uma pergunta que causa curiosidade sobre as diferentes esferas que temos da população.
Contra os pobres, muito. Contra os ricos, nada. Embora aqueles jovens não transparecem-se pertencer nem a um extremo nem a outro. Seriam a chamada classe média? Eles ficam para trás e esse julgamento por ora me some, retornando somente para as páginas desse texto. Seguindo pela passarela, me deparo com dejetos que logo voltarão à reflexão dessas linhas. Prefiro por ora terminar o trajeto da passarela e seguir pela calçadinha ora de concreto, ora de madeira, que nos leva a outros limites oceânicos. O restaurante à beira mar que costuma nos exalar com cheiro de fritura dessa vez está mais vazio. A praia como um todo se encontra assim. Nem os típicos surfistas deram as caras tão cedo. Talvez cheguem no decorrer da tarde, pois trata-se de um preguiçoso sábado. Ou talvez, como eu observo, o mar não esteja tão propício aos nados e manobras hoje. Está bem mais calmo apesar dos impulsos do vento.
Uma mulher em roupa fluorescente rosa corre em busca dos limites desafiados pelo seu corpo. Um galho à beira da água dessa vez me confunde com uma bicicleta. Minha mãe outra vez disse que ele se assemelhava a um daqueles dragões ou lagartos grandes das distantes ilhas asiáticas. Pode ser, pode ser. Na verdade não concordei em cheio com ela nessa ocasião. Mas ter enxergado uma bicicleta tombada onde ali repousava um desses galhos/troncos preocupou-me quanto à minha capacidade visual.
Enxergo o rosto de minha menina por essas caminhadas. Acho que pode ser a coisa mais natural do mundo. Lembranças e flashbacks que nos misturam à mente enquanto pensamos justamente nessas, mas também em outras coisas da vida, do cotidiano. Ora presto mais atenção em algo que minha mãe tenha a dizer, ora me disperso. Recordo que na adolescência, quando talvez achasse possuir mais amigos, tinha certa ridícula vergonha de caminhar com meus pais, sair com eles. Uma tremenda bobagem que hoje só se demonstra como perda de tempo em que ainda posso contar com eles, visto que são idosos, estão se aproximando mais dos 70 do que dos 60 anos que possuíam. Hoje, pelo contrário da adolescência, eu bem adulto não vejo problema em caminhar com meus anciãos, fico feliz que ainda posso desempenhar essa função. Acompanho seus passos, procuro até reduzir minhas passadas para que não se esforcem demasiadamente para acompanharem-me.
Interessante a trasferência de opiniões e justificativas dos seres humanos. Eu que possuía a tola vergonha de acompanhá-los agora até me orgulho. Sentimentos vãos e bobos que ficaram para trás. Quanto às minhas amizades, se antes eu desconfiava, hoje tenho certeza que poucos ficam e esses que ficam me competem maior importância do que competiam. Percebo que na adolescência possuía eu maior dificuldade em lidar com os dividendos das amizades, em compartilhá-los com mais pessoas. Outra tolice fútil, mas incorporada inevitavelmente à nossa rotina e às nossas escolhas. Hoje percebo que os amigos remanescentes também estão mais solitários. As amizades cultivadas de mais tempo elevam-se como plantas que crescem demasiadamente, chegam a um topo um pouco mais solitário que a disputa intensa do solo pelas gramíneas e árvores rasteiras, populares arbustos. De qualquer forma, hoje os divido menos. Da parte deles, espero que não pensem que os divido com muito mais pessoas. Sou um lobo solitário, apenas agraciado numa tarde de inverno em poder caminhar na companhia da sexagenária senhora minha mãe.
Agradecendo à comunidade composta pelos escassos amigos e minha família, prossigo já no caminho de volta, agora contra o vento que colide fortemente em meu rosto. Ando cabisbaixo, dessa vez mais em manobra defensiva contra a ventania do que por estado de ânimo. Embora essa justificativa seja muito sensata também. Ao voltarmos pela passarela, cuido desde passos anteriores para não pisar nos excrementos que havia notado na ida. Pelo caminho humano, me parece que alguma pessoa os fez. Noto isso muito em calçadas, em ambientes públicos em minha cidade natal. Me faz pensar nos desalojados, nos sem-teto, ou talvez em pessoas inconsequentes em madrugada que a troco de nada precisariam se expor (e principalmente nos expor) dessa maneira. Contornada essa merda toda, não volto para avenida da beira-mar sem antes notar que o lixo também se acumula nas fendas laterais dessa passarela. Ao mirarmos para baixo, como eu andava cabisbaixo contra o vento, é fácil notar o acúmulo de sacolas, bandejas de isopor e outros descartes ilegais em meio às dunas cobertas por vegetação. Não fosse o mato alto e seria mais visível a nulidade a que se submete o ser humano. Não é exclusividade pelotense, de fato.
Entre reflexões mais ou menos aprofundadas, também obviamente noto que os rapazes pelo visto consumiraram todos os seus porros e já não se encontram encostados às muretas do mirante ao lado da passarela. A polícia também seguiu adiante, queimando combustível. Nosso caro combustível em 2022. Caro como nunca antes. Os policiais foram almoçar, ou já estavam almoçados. Fica também a inútil e infrutífera dúvida. Os jovens estavam abrindo o apetite, mesmo que já tenham almoçado.
Antes de dobrarmos em direção à nossa rua, saindo da avenida da beira-mar, minha mãe dispara uma frase certeira. "Essa cidade é a minha cara, não gosto do barulho, do tumulto." Perdão para minha mãe, porque não foram essas exatamente suas palavras, mas por ora servem para divulgar seu pensamento antes absorto. Em comunhão agora com minhas ideias, relaciono a certidão e retidão de seu disparo. Realmente a cidade é um achado. A cidade de brinquedo, como costumo brincar. Com as ruas que não costumam ultrapassar o limite de duas ou três quadras. As poucas avenidas, mesmo elas, de trânsito lento e pacato. As casas espaçadas na maior parte da cidade. As conveniências básicas atendidas em questão de padarias, supermercado, farmácias e lojas uma de cada coisa, algumas repetidas, obviamente. Conveniências de móveis, eletrônicos, materiais de construção e o que mais for preciso em nosso presente século.
A cidade é sim um aspecto favorável à minha mãe, parece ela se encaixar muito bem nela para seus últimos anos, já passados alguns de sua aposentadoria. Minha vó viveu a vida inteira em Pelotas e também por aqui terá seu desfecho quando ultrapassar ou não a casa dos 90 anos. E ela parece resignada e até arriscaria um tanto contente por explorar novas identidades e aspectos visuais, mesmo em sua idade avançada. Pelo caso de minha avó, penso até o contrário, que deveríamos tê-la trazida a novos horizontes tantos anos antes. Mas antes agora do que nunca. Ela terá estruturalmente, em termos de cidade pacata, segura, relativamente limpa (apesar de meus relatos anteriores) um desfecho digno. Saúde a reserve - embora dessa tenhamos nenhuma garantia do dia de amanhã.
Sobre minha mãe também agradeço pelo encontro casual - nã, na verdade estudado - com essa cidade, pois a outra investigação litorânea que a levaria à Palhoça parece que não nos agradou. Peço excusas aos palhocenses que poderão ler essas linhas. Mas o aglomerado rápido e selvagemente urbano que circunda Palhoça nos desiludiu à essa localidade. Parece melhor para jovens aventureiros na necessidade, primeiro de emprego, depois de aventura. Os contornos de Florianópolis são agitados. Aqui, mais de hora distante da ilha da magia, não tanto. Reina, no Junho desse inverno, a pacacidade nesse novo território que ainda estamos, após alguns meses, em fase de exploração. Conhecendo cada vez mais e às vezes nos resignando pelo convívio ocular não nos reservar novas surpresas. Mas os trejeitos e trajetos urbanos são assim mesmo. O crescimento de nossa nova cidadezinha litorânea é inevitável. Erguerão casas e prédios que nos sufocarão aos poucos.
Calculo junto à minha mãe quanto tempo durará. Colocamos década como previsão para mudanças mais drásticas, de novos moradores, construções agitadas em andamento. Ela concorda. Quando lá estivermos - se estivermos - ela já estará mais para os 80 que para os 70 que hoje se aproximam. Todos fazem aniversário, mesmo quando não estamos mais aqui. Isso, assim como o crescimento urbano e populacional, é inevitável.
Como último ponto daqui breve - nem tão breve - reflexão, penso eleitoralmente na eleição que se aproxima. Faltam exatos 100 dias na medida em que escrevo essas linhas. Muito se comenta do fascismo catarinense. Mas pouco se fala, aos defensores do Rio Grande do Sul, por exemplo, da quantidade de gaúchos com esses pensamentos encucados e enraizados que migram do RS para SC. Assim representam dois fenômenos. Primeiro que esvaziam o RS dessas práticas, o que é muito bom para o RS, parabéns ao RS. Segundo que aglomeram por essas abençoadas naturais terras com essas práticas anti-pobres. Uma pena para o estado que ora eu habito. Esvazia-se um lado, preenche-se o outro. Encontram comunitariamente pessoas de pensamentos aproximados com seus costumes e ideais um tanto questionáveis pela minha pessoa.
Quanto à minha família, para nossa cidadezinha, como enxugar gelo, garantimos mais pelo menos cinco votos contrários à essa máquina destruidora do país nos últimos quatro (ou seis?) anos. Ainda não revelo aqui a certeza de meu voto daqui aos estimados 100 dias, mas é possível que eu revele por este mesmo canal, em algum momento. Neste momento em que escrevo, meus amigos, ainda faltam reflexões a serem analisadas e feitas. Até um futuro breve na contagem regressiva dos 100 dias. Câmbio e desligo.
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