Comecei bem essa reflexão, porque vinha errando o nome do dito filme. Mencionava e pesquisava Estrada para Vida, quando trata-se na verdade do filme Estrada da Vida, do diretor italiano Federico Fellini. É um filme de 1954.
Entre os tópicos que destaco, porque esse filme já foi asssitido e avaliado centenas e dezenas de vezes, trago uma proposta que Fellini bem abordava em seus filmes, característica talvez do cinema italiano em geral. O circo. As passeatas. As romarias. O autor procura dimensões e desenlaces muito humanos. Peregrinações. Procissões. Em Estrada da Vida isto é bem evidente. O filme é todo itinerante. Os personagens percorrem trajetos enormes. A moça principal, Gelsomina, sendo vendida ao artista de circo, Zampano, logo nas cenas iniciais. Seu destino assemelhando-se a uma parente mais velha que desapareceu sem direito da família enterrá-la. Esse ponto do filme fica bastante obscuro, sem o roteiro lançar luz do que ocorreu exatamente com Rosa, a personagem da qual só ouvimos o nome, evocado por sua irmã mais nova, ou seja qual for o grau de parentesco da atriz principal.
Em crítica que li sobre o filme, o destaque realmente está nos atores, que conduzem muito bem a obra, itinerantes e expressivos como sugere a trama. Artistas de circo, eles percorrem de tudo, ciganos em busca de renda. Nômades. Gelsomina cambiando de ideias e vivências como se muda de roupa ou de marcha em um veículo automotor. É bem verdade que o filme salta alguns períodos de tempo, mas a impressão que temos é de velocidade no percurso da obra. Zampano, sim, torna-se de glorioso e forte para repetitivo e enfadonho, limitado ao número de utilizar da força para romper as correntes. Gelsomina cansa-se, almeja rumos maiores, interagir, conhecer novas gentes e histórias, aprender instrumentos musicais como aprendeu o tambor e o trompete.
O relacionamento entre os dois é complexo, abusivo, ele é imponente, a maltrata, a isola, a subjulga . Na temática de Fellini, a problemática da sociedade da época (será só da época) de homens inseguros procurando controlar situações, controlar mulheres para que não saiam do campo magnético de seus respectivos egos. Zampano demonstra tanta força muscular para partir correntes, mas fracassa nas relações humanas, em seu matrimônio comprado a liras. O equilibrista surge como grata surpresa entre os personagens, aprofundando a filosofia presente na obra. É interessante quando trata da morte e se resigna, entendendo que, pela periculosidade de seu número circense, não duraria muito tempo. Embora pense dessa maneira, seu destino na trama seria distinto desse desfecho.
O equilibrista equilibra assuntos, não perde o bom humor mesmo quando fala sério. Talvez a melhor piada seja quando compara Gelsomina com uma alcachofra. Ele então também era um humorista, a rir e a consumir erva. Mantinha o bom humor apesar de não se tornar um enfadonho otimista ou positivista desenfreado. É de fato um caminhante sobre as cordas bambas - da vida.
O equilibrista ajuda Gelsomina em esclarecer suas confusões na mente. Para onde ela iria? Com quem ficaria? Qual seria o seu papel, para além do circo, dos afazeres? Que fim levou sua irmã? - que o roteiro não nos responde. Gelsomina vivia intensamente e intensamente mostrava-se confusa, às vezes solitária, incompreendida, isolada, desamparada. O equilibrista é importante nessa conversa que ela tão pouco tinha oportunidade, pois era brutalmente tratada por Zampano.
Uma passagem interessante é quando ele define Zampano como um bruto cachorro. Apenas sabe ladrar, latir, vociferar, mas tem nenhuma experiência com o diabo do diálogo. O que dificultava demais o relacionamento entre os personagens principais.
No mesmo dia, minha namorada perguntou sobre uma canção que estava em um filme e ela não lembrava a qual filme pertencia. No filme de Fellini, Zampano identifica a canção de sua amada anos depois, por outra mulher a cantarolando. O que marca uma canção? Como pode ser relembrada dias, meses ou anos depois? Eu havia feito esses questionamentos no dia de ontem, e hoje me deparo analisando os personagens que a identificação da música é uma das raras vezes em que Zampano repara em sua esposa, lhe presta contas. Mas, como visto, era tarde demais. Zampano convive com o remorso, a culpa, o abandono, a falta de esclarecimentos no que devia respeito à Gelsomina.
Amargurado, o circense decai longe de seu auge físico, amargurado pela imoralidade, desafeto em álcool, desamparado callejero errante. Seu destino se demonstraria tão trágico quanto os recorrentes erros em suas decisões. Na estrada da vida, o destino trágico escapa a nenhum deles. Me torna refém das palavras do norte-americano Ernest Hemingway. O mundo mata a todos. Com especial pressa dedicada aos muito bons, aos muito meigos e aos muito bravos. Destino inegável. Se não te identificares com os muito bons, os muito meigos ou os muito corajosos, não tem problema, pois o mundo te matará igual. Só talvez não tenha toda essa pressa... É a inevitável estrada da vida, de Fellini às nossas autopistas em 2022.
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