Leio sobre vida e obra de Jorge Amado, descobrindo uma intensidade nele presente. Dela eu não fazia ideia. O processo da escrita é curioso realmente. Pode surgir de uma pessoa comunicativa e bem aventurada como ele foi, no convívio de conflitos por terras na Bahia e no Sergipe, no frequentar casas de cabarés, no frequentar e fugir de internatos. Sua ida ao Rio de Janeiro, sua participação efetiva em diversos jornais, sua militância no PCB. Sua vida afetiva e a amizade com alguns dos principais nomes ocidentais do século 20. A escrita está repleta de exemplos sobre os personagens com quem ele cruzou pelo caminho. Mas a escrita também pode surgir de nós mais introspectivos. Observadores mais distantes, curiosos interessados em vários temas, criadores a partir das leituras que armazenamos ou urgentemente fazemos - como essa - em minha cabeça.
Concordei a pleno com uma citação de Jorge Amado de que os personagens não podem ser reféns da história. A história deve ser refém dos personagens, se assim for. O que isso quer dizer? Não devemos planejar a história já com seu final, obrigando a diferentes e complexos personagens mundanos a encarar o que seria um verdadeiro circuito rumo ao desfecho. Não. Os personagens têm características próprias, agem quase que por conta própria, podendo-nos inclusive arrancar esse quase. Eles caminham com as próprias pernas. Dão seus jeitos. Alçar um roteiro, uma história pré-programada seria limitá-los, restringi-los. Melhor que os personagens, a partir, através de suas características nos mostrem aonde querem ir. Nosso lápis, nossas ideias os acompanharão.
Sublinhado isto, adiante Jorge Amado confessa nessa entrevista de 1981 que acabo 40 anos depois por ler, que devemos amar essa nossa terra. Esse nosso Brasil. Contextualizado, ele que vem de pais semeadores, ligados às terras e aos campos, que viajou por todo o país, na política e nas cassações - viajava mesmo "preso - ele aprendeu muito do valor de nossas diferentes e continentais terras e sobretudo sobre o povo aguerrido que nelas procura colher. O povo Jorge Amado definiria como a síntese de suas obras. O contato com o povo, com o qual ele tanto aprendeu. Pessoas sofridas e personagens para os quais muitos da nossa média burguesia torcem os narizes: trabalhadores, prostitutas e beberrões. Nesta enfatização, acompanho Jorge pela significação majoritária desses grupos, como ele diz, constituintes de nossa nação, presentes em relatos dele que procuram contar a realidade e o cotidiano, e deles não podemos fugir nessa transfiguração. Além da composição realística, minha admissão aqui é de que esses grupos possuem força expressiva, mistérios, curiosidades, trilhas a percorrer. Influências psicológicas, emaranhado de escolhas que os levam aonde forem. Como traçar um caminho pré-programado se o magnetismo dessas figuras pode nos surpreender em suas nuances de vidas próprias?
Comecei a escrever pensando no sentimento brasileiro despertado, porque fui assaltado aos ouvidos com músicas na vizinhança, elas devida e pomposamente nacionais, como Metamorfose Ambulante de Raul Seixas, Que País é Este? de Legião Urbana e a minha favorita das três: Malandragem da Cassia Eller. Obrigado a ouvir as três, procurei um significado, uma união, um laço entre elas. Três músicas hoje antigas que atravessam décadas até serem ouvidas aqui no litoral em pleno arrancar do 2022. Raul me causou dúvida porque já gostie mais. Influente amigo meu o desgosta. Mas penso que Raul teve o que dizer, a quem dizer em sua época. Talvez minha releitura negativa só chegaria pelo viés da repetição: ouvimos muito dele, numa quantidade limitada de canções que nos são repetidas. Situação semelhante ao Legião Urbana. Quanto mais tive paciência de aprofundar meus ouvidos para dentro dos discos de Legião, descobri ritmo semelhante a algo mais latino-americano, assim me referindo para fora dos limítrofes do país, mas dentro dos limites da América Latina. Legião tem muito do seu valor desconhecido pela repetição das mesmas músicas. Quem gosta dos pequenos trechos da banda comandada por Renato Russo, ou mesmo quem não goste, poderia dar uma chance a mais em uma profundidade mais austera.
Enfim, o foco da discussão é Jorge Amado, um amador no sentido de muito amor para dar. Inclusive em um tópico cobraria um maior profissionalismo no desenvolvimento da escrita - e das críticas - no país. Mas um apaixonado. Degustou da vida e muito dela registrou. Se inspirou e passou sua palavra adiante. Repleto de experiências, tinha muito de onde beber, de onde colher relatos para engrandecer seus livros, para retratar um realismo que muito estava em voga. Nesta vida terei em relação a ele muito menos experiências pessoais e muito menos sucesso. É impossível comparar. Porém fraternalmente, como ele estendeu o braço para muitas pessoas, incluso as que pensavam politicamente divergentes dele, caminho um pouco ao lado de Jorge, de Jorge Amado. Presto atenção em suas citações no que primeiro encaro a conhecida história dos Capitães da Areia de Salvador, mostra que reconheço do cinema brasileiro. Dali observamos um Brasil real que muitos relutam por não ver, ou pior ainda, julgam sem conhecer. Não conhecem as raízes, a falta delas, os motivos, a falta de recursos, de assistência, de oportunidades. Acompanhando o final do romance, crio uma imagem, uma ideia de perpetuação. Apesar do desfecho distinto dos personagens da trama, os capitães da areia mudam de posto ou vão para cova e o mundo segue, em uma formação entre a organização e a desorganização, em uma hierarquia que poderia parecer infantil, mas é séria em suas complexas matizes.
O chamado de Jorge, o Amado é para prestarmos atenção no Brasil. Um Brasil que ele viveu intensamente, mesmo depois fora dele, pelas lembranças que nem tentando abandonamos. Fortes, sustentadas, afincadas. Afinadas em nosso catalisador da memória. Dele recebo, presente tardio, histórias de um Brasil que não vivi, não viveria e não viverei, nem tenho como. Agradeço como uma oportunidade a mais para seguir adiante, observando detalhes que ele chamou a atenção. Perscrutando política onde é necessário adicionar mais do tempero da política, pois que sentido nos pode haver na vida, nós iniciados, sem o ideal por mudanças que consideramos necessárias? Sejam em nós, sejam pelo bem dos outros?
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