27/12/2021

Percebi que reprovo a vista do mar

Percebi que reprovo a vista do mar. Para sairmos de um prédio barulhento entre móveis arrastados e conversas de vizinhos em plena madrugada, viemos para outro prédio nessas condições, principalmente na questão dos móveis. Eu já havia sinalizado: apartamento só na cobertura, mas não fui atendido. O canto da sereia foi mais alto. A sedução de uma linda vista defronte o mar. E estou inclusive reprovando-a, como bem anuncia o título do texto. Digito isso sobre uma cama de molas desreguladas e manifestantes, para ampliar minha aflição. Mas explico porque a reprovo. No momento me posiciono contra essa vista porque ela se faz presente em uma facilidade absoluta, a hora em que eu quiser. Posso ver como está o céu ao longe no horizonte, como estão as ondas no mar. Posso ver o movimento dos caminhantes, o ir e vir de centenas de desconhecidos. Posso observar quem estaciona o carro e vai-se embora, para curtir a areia sob (e entre) os pés ou subir para academia ou bares ao redor. Posso inclusive, contra princípios mais honestos, observar um pouco da movimentação de prédios ou casas vizinhos mais próximos. Várias possibilidades, como podem ver. Porém essa vista torna-me mais preguiçoso. Ao ter a contemplação do mar tão facilmente perde-me o encanto de ir ter com ele. O contato absoluto, definitivo. A vontade de sair de casa com a gana de ouvi-lo, vê-lo e senti-lo, o mar, velho companheiro desde minhas primeiras viagens infantis. No alto da maturidade que me avança, estou perdendo aos poucos. A menor vocação para encarar a água mais fria no choque térmico, a menor diferença que faça o contato dele com minha pele. A repetição de tudo que já vivi em uma redução de significado, ao invés da ampliação.

Além do mais, já traduzi o sentimento dos últimos dias em Santa Catarina. Me sinto como em um condomínio igualitário, que, em geral, em geral me é funcional e confortável, mas não me revela o âmbito da surpresa, da caoticidade criativa que tanto aprovo em minha cidade natal. Ao deparar com um trânsito mais tranquilo, melhores condições estruturais e sociais da população e por conseguinte um menor índice de violência, também não consigo fugir da sensação de paraíso artificial. Questionar, como na reflexão anterior, meu próprio mérito. Lamentar por aqueles que aqui não chegam. Olhar para esse mar que ao nem tão longe me provoca, propaga sua sedutora energia e me questionar o porquê de estar aqui. Tentei traduzir esse sentimento de funcionalidade e determinado tédio - mesmo aqui há poucos dias - no episódio do desenho Bob Esponja, em que Lula Molusco migra de sua habitual casa para um condomínio onde todas as casas são iguais e todos os moradores possuem os mesmos hábitos que ele. Tocam clarinete, aspiram folhas com sugadores para limpar a grama, apreciam corais e fazem danças. Ao passo que os dias se repetem, Molusco sente falta dos antigos amigos, das imprevisibilidades, das confusões cotidianas. Posso me sentir um pouco assim nesse espaço. Carente de uma sociabilidade que hoje só tenho no meu bem estruturado, baseado e construído convívio, com seletos amigos e alguns ambiente profissional. Em SC eu teria que construir praticamente do zero sem saber por onde perambular essa prática, principalmente porque, como vem cedo ou tarde à tona, a pandemia de covid segue a toda, impedindo diversas atividades. O convívio social é limitado. E posso apontar isso de duas formas: pelas imposições da pandemia e também pela minha própria inabilidade, ineficiência social ou mesmo desinteresse, que posso ter criado em função das primeiras? Posso. Ao passo que também o jeito que as pessoas são assim me causam o desinteresse.

No flagelo de meu quarto, com o mar equidistante no dia a dia, em muitos desses dias, manterei alguma rotina de trabalho. Entre o conforto e o desconforto. Alguns me criticarão por talvez não desfrutar dessa experiência litorânea como deveria. Com otimismo e sossego. Alguns poucos me entenderão. Tal qual como as ondas que percorrem incessantemente o oceano, posso fazer nada.

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