Ela esperava aflita com o celular colado ao ouvido. As sobrancelhas desenhadas dançavam tanto quanto fosse possível nos movimentos ritmados da testa franzida. Após sucessivos toques na espera que ele a atendesse, desistia, levava o celular para dentro da bolsa e pisava firme contra a calçada, de vez em quando levando às mãos ao quadril. Mas a impaciência vencia aquela queda de braço e, entre uma olhadela ou outra para o relógio de pulso, ela percebia o avançado da hora e sacava novamente o celular de dentro da bolsa. Nervosa, nem a confiança de quem mesma arruma o depósito garantia que não voassem antes uma escova ou algum cosmético antes de encontrar o telefone novamente. Não precisava digitar, o número do marido, cada vez mais evidentemente ex, estava no dígito para chamadas rápidas, mas também estava naquela lista de chamadas recentes. Todas dela, nenhuma atendida.
E as crianças... As crianças! De vez em quando ela, aérea das ideias, esquecia os pequenos que deveriam estar de encontro com sua mão para não fugirem, ou ao menos muito próximos, dentro do campo de vista. Ela estava à beira da estrada para praia. O movimento era intenso. Não era o mesmo de domingo, realmente. Mas o de sábado também trazia os entrocamentos aqui e logo adiante. Será que estão parando pela lombada? Não, é porque travou o trânsito mesmo. Que droga de horário! O trânsito, o passar da hora, mais uma olhada para o pulso, o relógio, que bonito era o relógio, seu pai o havia presenteado. As crianças! Pedro ia parar quase no acostamento. Rodolfito, em homenagem ao cantor argentino, se aproximava da cerca de arame, eles que aprontavam tanto juntos, mas também gostavam de explorar cada qual para seu canto. Um quase querendo ser atropelado no movimento intenso da estrada, o outro no mínimo querendo espetar o dedo no arame farpado da propriedade vizinha. Uma fazenda por ali, ou pelo menos a extensão de terra com proprietário, pois não conseguia, ao espichar o olho, localizar algum plantio no terreno que se estendia à frente da casa, lá adiante nos fundos, quase invisível. Quem sabe plantavam algo lá atrás? E o que te importa? Não vem ao caso. O Pedro... o Rodolfito. Onde estava a Laura? A Laura então se apresentou como a mais encrencada dos três, pois havia encontrado uma cobra.
Ela dedicou os primeiros cinco minutos a manter-se longe do celular, era o que precisava ser feito. Dar uma boa bronca em Laura. Que perigo correu! Perto da cobra. Poderia perfeitamente ter sido atacada em um ligeiro bote e ela, enquanto mãe, jamais saberia. Ela tentando a ligação. Ele sem atender. Quantas tentativas já havia ligado na insistência? Mais de 20 certamente. A Laura. Olha aqui, Laura. Laura, não chore. Laura, você precisa entender. Laura... E o Pedro e o Rodolfito? Agora o mais novo, Rodolfito, subia pelos ombros de Pedro a tentar romper a cerca de arame farpado e se agalhar na árvore. As árvores. Ao menos alguma sombra naquela espera maldita que prolongava arrastados minutos, cada qual podendo reservar uma surpresa como essa de Laura ou dos meninos podendo se machucarem, perto dos arames, um corte ali. Aí a urgência da carona para os compromissos dela viraria uma desabalada carreira rumo ao hospital para estancar o sangramento do... do... de quem? do Rodolfito só podia ser. Fito desce daí! Agora, menino! Pedro, ajuda ele a descer. Se subiram é porque conseguem voltar, ora, onde já se viu? Descia Rodolfito ainda aos risos e guizos, soltando o galho da árvore e retornando os pés para a segurança do chão.
Segurança. Era isso que ela desejava e não tinha mais. O marido que sumia, o marido que não atendia. Está bem que das outras vezes não costumava passar da terceira ligação, mas ela também demorava mais a ligar, as ligações eram espaçadas, ela lhe dava o benefício da dúvida. Mas hoje não tinha como explicar em pleno sábado. A ligação da chefa. A urgência em retornar ao posto de trabalho. Aquele trabalho com salário de estágio. Ora, ela não poderia ter chamado outro? Não, bradou a chefa que os demais haviam se organizado, viajado juntos para mais longe, quase um acampamento, uma ideia idiota, é bem verdade, ainda agosto, nem bem calor fazia, mas deram sorte, ora, pegaram um rico fim de semana de sol. E ela achou que poderia curtir ao menos a praia. Mas mal chegaram, ela que pegaria algo da lojinha de conveniência, a que ela tinha cartão, tinha desconto, tinha pontos de vantagem, achava o atendente bem apresentado. Mas a ligação da chefa interrompeu tudo, nublou a tarde de descanso dela. Que descanso? Essas crianças imprevisíveis, com mais manobras nas mangas do que o próprio diabo. Laura aquietou-se, sentou-se sobre uma pedra, para longe da cobra, para longe de qualquer outra criatura viva. Ainda bem. Mas e o Rodolfito, que ainda ria e produzia guizos naquele momento em que descia de sua última travessura, o Fito onde está? O Fito sim quis contato com a natureza, aterrissava seus pequenos tênis sobre um carregado formigueiro. Novamente ela de olhar arregalado, a boca escancarada, aberta, mas mutada, sem produzir um ruído. Que chance teria esse moleque de sair ileso dessa vez? Os raios sobre o mesmo lugar, ou sobre outros lugares, tantos são os locais que uma criança pode arruinar um final de semana. E a chefa também, a chefa que vá ao inferno, pessoa desorientada das ideias. Mas só haviam loucos naquela cidade?
O Fito. Mas o que foi que eu te falei??? E de fato nem ela recordava o que havia falado, mas de prontidão estava com a mão espalmada a rebater as canelas do menino contra qualquer arruaceira que despontasse rumo a locais piores para picar o garoto. Tirou os tênis do filho, bateu-os contra a pedra em que Laura estava sentada. Laura que estava quieta já não gostou do ajuntamento sobre sua pedra, Laura que desafia frente a frente a cobrinha do mato, agora só queria descanso, mas de qual maneira? Com aqueles irmãos. O pequeno tudo bem, se ao menos o Pedro mais velho o ajudasse na criação, mas, pelo contrário, desvirtuava de vez o mais novo. Onde estava o Pedro que para longe da pedra se encontrava? O Pedro sabe-se lá como superou a barreira de arame, achou algum furo, algum buraco por onde embrenhar-se e percorria o terreno vazio à frente daquela propriedade, fazendo ou o que fosse. Cada qual pior dizia ela consigo mesma. Pedro! Pedro, pelo amor de Deus! E dos gritos dela, se antes Pedro não o havia despertado, partia um cachorro à alta velocidade. Aqui será ocultada a raça do animal para que não sejamos acusados de preconceito contra qualquer raça que você não a julgue violenta. Tudo bem, saibam que havia raça, ah, se havia naquele cão. Uma das bem conhecidas, tanto maior seria a implicância com os donos, pais de pet e simpatizantes que a defendem, enfim. O cachorro partia em direção a Pedro, ela partiu para um cálculo mental, tentou calcular a hipotenusa daquele triângulo-retângulo para a salvação de seu pequeno menos pequeno, Pedro percebeu o cachorro, claro que percebeu, só por isso tentava voltar. Pedro na dianteira, o cachorro a se aproximar. Pedro ou o cão. Pedro ou. O cão parou de repente, porque uma invisível coleira o isolava daquele intruso. O menino, vendo-se em plena segurança, achou graça do episódio. Eram o diabo. Se não cada um deles, ao menos a união fazia a força para duelar com as ocultas fortalezas subterrâneas do inferno.
Ela enxugou a testa. No movimento aproveitou para olhar o relógio de pulso. Nada do marido. Olhou para Laura, que agora ajudava o outro intruso, o do fomigueiro, tal qual aquele filme infantil, o Fito se livrava das últimas formigas e, tamanha a sorte que os acompanha - será? - nada de Rodolfito reclamar de possíveis picadas. Que assim prosseguissem na viagem para o retorno. Mas quê viagem?! Qual retorno? Se não havia carona. Nada do marido atender o celular. Tentou a 24ª vez. Não precisava contar, estava ali de pronto o registro na agenda telefônica.
Pensava ela no atraso, na bronca da chefa, mas dos outros que acampamento o quê, em pleno agosto, nem calor estava, mas aquele sábado estava, escolheram bem o dia, aquilo sim que era sorte, um fim de semana fora, um fim de semana de descanso, quiçá de aventuras e algo mais, será que Glória era a fim de Flávio, parecia para ela que sim. Que fossem para o inferno. Só não desejou isso porque era capaz de aparecerem ali, caírem de paraquedas. Era possível. Ainda pensou que eles que se meteram mato a dentro e ela, parada ali ainda menos de hora, consultou o relógio para conferir se era menos de hora e já havia episódio com cobra, formiga e cão e sabe-se lá o que mais Noé salvou para exclusivamente, passado milhares de anos, aprontar com ela naquele sábado. Com esse único objetivo a arca estava cheia quando a Terra ficou definitivamente cheia d'água. Era para alinhas as pragas todas contra o seu bem estar naquela sucessão de acontecimentos inimagináveis.
Quer saber? Assobiou o mais alto que podia, o silvo serviu de chamado para os pimpolhos que se reuniram em volta dela, estranhamente ordenados como se um chefe militar conferisse uma inspeção inesperada. Só faltou baterem continência, coisa que ela abominava. Abominava mesmo, por que casou com um que serviu ao exército? Nem ela sabia mais onde tinha se metido com sua vida. Com aquele despistado, com aquele perdido, ordinário, vagabundo e outros adjetivos impublicáveis nesta feita. As crianças ali, todas, as três juntas e prestando atenção, talvez a primeira vez em meses, porque mesmo no mesmo recinto, dentro de um carro Pedro mexia com seu joguinho estilo aqueles game boys antigos, machismo na chamada que era mais absoluto na época, a menina sempre avoada, a olhar pela janela paras as mais fronteiriças distâncias onde a vista alcançava, ela pensava que Laura sentia a separação do casal antes dela, era esperta a menina, disso ela tinha certeza, era inteligente, só não tinha medo de cobra. Se é que isso era defeito. E o menor ainda a tirar meleca das narinas, esperava ela que rompesse com esse hábito o quanto antes. Enfim, os três reunidos. Ela aparentou cautela, mas pegou e arremessou seu celular longe. Caiu passando a cerca, ricocheteou ainda em um dos galhos, não daqueles que Fito subira, mas em outro e espatifou-se na grama, talvez a batida com a grama sem o contato suficiente para destruí-lo, mas em acesso de lucidez, ela tão louca e tão lúcida, olhou para o chão úmido apesar do sol que fazia, pensou na mudança do tempo e que logo logo aquela porcaria jamais imploraria atenção novamente ao marido.
Nem o celular, nem ela. Pegou Fito pela mão por ser o menor, aproveitou a atenção dos demais e foi caminhando. Não vamos esperar a carona? Perguntou Pedro. Seu pai não vem. Voltou para a loja de conveniência do atendente interessante, mirou a plaquinha na frente que apontava a necessidade de ajudante em um turno. Aproveitou para mandar dois diabos para o inferno em sua vida, o que ela tentava ligar e a que ligava para ela, e reunir os três diabinhos em torno de si. Ao menos comida não vai faltar, pensou por último, vendo as crianças novamente se distribuírem pelas prateleiras, Fito tentando alcançar o que era alto demais para ele, Laura com noção até compras saudáveis. Só não tinha medo de cobra. O atendente sorria e ela também.
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