O filme Orelha (1970) de Karel Kachyna é mais uma das críticas ao Partido Comunista em vigência na época na Checoslováquia. Uma daquelas obras que ficaram trancafiadas pelo período ditatorial. Na trama, um casal volta de uma das festas do Partido e percebe mudanças em sua residência. A moradia aberta como se um deles tivesse esquecido de chaveá-la, a luz elétrica desconectada, a trama aprisionante à luz de velas.
A narrativa é centrada nessa morada deles e a paranoia que os consome é a de que o Partido os está vigiando. O medo da separação, o medo de ser preso, a ideia de apontar culpados: quem os denunciou? Como obtiveram essas respostas? Estão espalhando escutas pelo apartamento? Tudo isso permeia o caso desse par que já estava com suas dificuldades conjugais, com acusações de traição no matrimônio, o que pode acentuar as dúvidas em relação a quem traiu quem e como.
O grande ponto observado por mim enquanto outsider da realidade comunista no Leste Europeu daquelas décadas é a ideia de que o Partido cometia traições internas e poderia ruir dessa forma. Veja bem, obviamente o regime tinha seus rivais, havia organizações externas a ele, tentando derrubá-lo. Havia também essa paranoia na administração política, que identificava inimigos fantasmas, inexistentes, caçava cidadãos comuns que os amendrontava. Além disso, a Europa convivia novamente com muitos espiões. Pessoas que atravessavam fronteiras para coletar informações relevantes que poderiam revelar pontos fracos dos sistemas. Do Leste para o Oeste e vice-versa.
A ideia de que membros do Partido estariam seguros nos burocráticos processos é superada. O funcionário do filme se vê em um plano de sabotagem. Ele pode ser preso, ele pode ser excluído do sistema. Ele pode ser morto. Ele pode se separar de sua amada para sempre. Ela com o mesmo sentimento. Ambos com um feeling perguntando-se onde erraram, o que vazou, o que o Partido poderia ter ouvido através das escutas? O que um poderia ter traído o outro até aquele ponto crucial, até aquela noite decisiva?
Veja bem que as traições internas em um Partido podem ocorrer pela hierarquia dos cargos. Funcionários 'invejosos' de encargos menores aspirando a vagas mais próximas do topo, em busca de prestígio, vantagens, salários, fama, banquetes: poder. A traição pode partir de um colega de departamento. A traição pode partir por uma felpa transformada em tapete. Para ser puxado o seu tapete. A traição pode ser uma prova imputada contra a sua pessoa. Pode ser justa ou injusta. E essa situação toda estaria restrita à Praga? À Checoslováquia? Ao Leste Europeu? Aos Partidos Comunistas? Ou ela poderia acontecer com qualquer um de nós dentro do regime capitalista, meio século depois? Dentro de nossas empresas? De nossas funções mais funções menos burocráticas?
Em tempos de redes sociais online, de onde pode partir A Orelha que tanto amendrontou, alvoroçou os personagens claustrofóbicos deste filme de Karel Kachyna? Seria a crítica uma mera propaganda contra o Partido Comunista no Leste Europeu ou um profetização dos novos tempos em que convivemos entre os muros de proteção e as exibições exageradas para estranhos e desconhecidos nas redes? Onde aperta o calo, onde aperta a Orelha de cada um? Onde estarão escondidas? Quem terá escondido? Com qual intuito? Com qual finalidade? Tudo isso é uma pulga que permanece a coçar mais de 50 anos depois, desde essa obra-prima de Karel. Ela parece inofensiva, parece distante, parece somente um filme arrastado, mas quantas dúvidas, quantas reflexões, quantas respostas inalcançáveis a cada fim de noite. A cada telefone: quem estará do outro lado da linha?
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