O implacável sono após o almoço documentava seu corpo e o mantinha no mais absoluto estado de inércia, em posição curiosa sobre o sofá. Os raios de sol entravam azulados naquele interior de sala, levemente modificados pela fina cortina de tecido que deixava uma fresta para a confirmação do céu aberto para fora da janela. Para dentro do parco espaço do apartamento as simulações de azul. Pelo lado de fora, a cor em definitivo, em seu estado mais completo. Alguns gatos miavam por telhados vizinhos em uma sinfonia desafinada e despropositada na cabeça dele, mas que, para os executores, algum sentido havia de ter.
A sonolência após o almoço desenha imagens estranhas, turvas, dessincronizadas na mente. Chega a embaçar-se de planos tão confusos, chega a embaraçar-se de ideias tão distintas. Possui uma tremenda dificuldade de discernir o que é real. Separar o chamado mundo real e o seu campo de criação inerente a ele. Estava absorvido completamente pela sonolência após o almoço, ao mesmo tempo que nem sequer recordava o que havia comido nessa última refeição. Flutuava como um corpo vago, assumia uma posição acima do chão, acima dos móveis de seu apartamento. Era ele uma figura de contornos amarelados - os mais otimistas diriam brilhante e dourado - e passava por sobre os móveis facilmente desmontáveis, por sobre os eletrodomésticos facilmente inutilizáveis na futura crise hídrica e de eletricidade. Flutuava ao mesmo tempo para dentro de sua própria mente, na tentativa da interpretação de tudo aquilo.
Saiu pela janela, defenestrado, pensou, palavra que nunca foi de lhe apetecer. Achava que defenestrado era algo muito específico e utilizado com uma frequência que requisitava tons, coquetéis de erudição. Mas o que ele estava sendo se não defenestrado de seu próprio apartamento? Flutuava agora sobre os prédios, naquela mistura de fascinação e medo, e receio, e vertigem. A altura lhe causava isso. Talvez já a sentisse, a vertigem, de dentro do apartamento ao sobrevoar os móveis, mas, ao seu corpo transpor para o lado de fora, agora nada o seguraria em uma provável queda livre. Provável, ele julgava, porque era impossível manter-se suspenso no ar sem ajuda de equipamentos, de asas, deltas, sigmas, betas, qual letra grega fosse. E enxergava tudo muito turvo, procurava registrar aquelas visões, mas sabia-se ocultado de total nitidez pela sonolência que lhe acometia após o almoço.
Nem o despertar do medo, da insegurança, da adrenalina disparada mudaria sua incapacidade de arrancar daquilo a melhor experiência. Mas e qual seria essa melhor experiência? Antenado de vez talvez morresse de medo em pleno voo. Ou julgaria tê-lo morrido ali mesmo deitado e estava sendo arrancado desse mundo, em um plano de aviação desgovernado, que o afastaria, afastaria da superfície terrestre gradativamente até que tudo não passasse de um ponto distante e indivisível perante o espaço sideral?
Ele percebeu os prédios muito altos, o arranhadores de céu, um espaço aéreo que não pertencia à sua cidade. Estava em São Paulo. Ou algo que o valha. Mas o que valeria em correspondência a São Paulo? O espaço ele decifrava como plano, não poderia ser um Rio de Janeiro e, se não fosse o Rio de Janeiro, nem a esverdeante Belo Horizonte, nem a confusa Salvador, nem a litorânea Fortaleza, nenhuma outra cidade poderia ser aquela. Campinas ele não conhecia, mas julgava, pelo crescimento acelerado de últimos anos, que ela não poderia dispor daquelas estruturas. Era São Paulo, então. Maior cidade da América Latina em que ele aceitava perder um possível amor, ao menos em sua própria cabeça. Não estava lúcido demais àquela altura? Não, porque esse possível era tão provável quanto as imaginações que somente a sonolência após o almoço poderiam conferir-lhe.
E seguiu sobrevoando o espaço aéreo paulista sem o mínimo aparato que lhe ajudasse, apenas a mente concentrada, ou perdão, desconcentrada e permitindo essa falta de critérios técnicos. Nenhuma infração estava cometendo, porque as viaturas policiais não voavam. Estava estudando a história mais do que secular de sua cidade no Rio Grande do Sul e percebia como o passado próspero, ao menos para as mãos de poucos, ruiu até para essa classe burguesa. Talvez assim as ditas "elites" se nivelavam mais ao desnível em que ocupavam os pobres, os familiares de ex-escravos, porque essa era a formação populacional do extremo Sul, ao menos em suas fundações. O trabalho escravo, a mão de obra escrava, as construções advindas de escravos. Tudo isso, no fundo, ou por vezes em erupção até o que considerariam raso, tudo isso lhe incomodava. Fazia-lhe subir o sangue, encontrava nele chagas de perguntas e vergonhas pela posição em que ocupava. Se oprimia pelo contexto histórico. E tanto melhor seria se mais gente tivesse essa mesma mão que atuasse sobre a consciência, esse mesmo conhecimento e dele extraísse mais, se mais pessoas praticassem o dia a dia com o objetivo da transformação social.
Sabia que as construções mais antigas, de antes da abolição da escravatura, tudo aquilo possuía mão de obra escrava e, mesmo se porventura não houvesse esse tipo de mão de obra, as construções eram em prol daqueles que possuíam as riquezas, que poderiam usufruir dos mais valorados espaços, que patrocinavam direta ou indiretamente as bárbaries da época. Tudo isso lhe incomodava, em especial a criação polêmica e complexa de sua cidade. Mas agora ele estava por São Paulo, capital paulista que era guinada a um crescimento desenfreado a partir do século anterior. Tentava esquecer os sombrios passados históricos e focar naquele voo, naquele planar de consideração ímpar, naquela oportunidade única em sobrevoar a maior cidade latino-americana.
Pensou em como eram pequenas as pessoas lá abaixo e seus metros quadrados conquistados com um esforço esplendoroso, com a luta, o suor e o sangue do dia a dia, para aqueles sob o conforto do ar condicionado doando horas de trabalho semanal em troca desses eletrodomésticos ou eletrônicos, assinaturas de serviços streaming para relaxar e ver um filme ao final de semana. Ou mesmo para aquelas ocupações de prédios condenados, cujas pessoas estendiam suas roupas e tapetes de improviso, amontoavam-se, procuravam fugir do perigo dos choques de fiações improvisadas ou soltas, das goteiras, do choque entre água e eletricidade, das más fundições, dos perigos até de desabamentos. Essas pessoas cujo um dia de faltar à labuta diária ao nível do solo levaria com que a própria barriga pagasse com a moeda mais cara: a da fome. Todas essas pessoas pareciam para ele distantes lá de cima, mas mantinha uma esperança, um afeto, um martírio, uma complacência, uma piedade em que gostaria de estar ao lado ou massageando o coração ou as chagas de cada um. Uma verdadeira ou falsa benevolência? ele sempre se botara em dúvida. Botara no mais que perfeito e botará em um futuro cada vez mais próximo. Porque esse questionamento em como lidar com toda aquela adversidade, com toda aquela desigualdade social era um ciclo que o corroía por dentro. Lamentava demais, agia de menos, pensava sobre. E se entregasse marmitas? E se rezasse por alguém, e se o conforto da boa palavra? E se negligenciasse a tudo isso, apenas em busca da amada perdida, ou encontrada pelas ruas de São Paulo (por outro)? E se?
O sonho acabou porque houve seu despertador no horário das 13h. Houve ou ouve. Ouve. Almoçava cedo, no curto período de tempo em que ele se embrenhava e ainda conseguia voltar ao apartamento. Estava terminada sua sonolência de almoço. Estava sim, cada vez mais lúcido, mais desperto, mas sabia que necessitava voltar ao trabalho e realizar as tarefas. Deitou de camisa social mesmo, estava com o nó pronto da gravata para não perder tempo. Enxugou o suor da testa, ajeitou o colarinho. Estava suado pelas axilas, mas o complemento do terno ocultaria esse evidente descuido. Não havia tempo para desamassar as vestes castigadas contras as marcas das almofadas do sofá. Havia sempre questões mais graves para resolver. Esqueceu de destravar o despertador do celular e precisou desacionar o dispositivo novamente às 13h15. Estava atrasado. E não só para o expediente daquele dia.
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