22/09/2021

O sétimo dia

A velha estava morta - disso, pelo apalpar do pulso, não se havia dúvida. Mas o que fazer agora? Aquela palestrante, aquela discursadora enérgica havia se resignado, estava morta. O corpo jazia caído. Não haveria como esconder, ela teria sido vista pela vizinhança àquela hora do dia. Precisavam de um álibi, uma causa mortis.

A discussão havia sido tremenda. Foi acalorando, foi acelerando as partículas todas até o choque final. Havia marcas das mãos deles contra o corpo da velha? Àquela altura já havia, sim. Contato físico. Constatariam alguma briga de mãos contra essa senhora de idade avançada? Ou achariam somente o que houve, o cérebro dando tilt, o acidente vascular?

Ele olhava para sua mãe. Estava atônito, petrificado, obviamente. Ele que tanto evitou discussões não conseguiu conter o bate-boca acalentado entre as duas senhoras, a mãe dele evidentemente mais jovem que a recém-falecida. A verdade, eles sabiam, é que haviam matado a senhora. Vítima da briga, da sucessão de argumentos, da falta de bom senso de ambas as partes. A senhorinha não resistiu, estava morta.

Dias após estavam os dois novamente, mãe e filho, na entrada da penitenciária. Nunca haviam estado em uma, cada cena era inédita àquela família de classe média. Observavam os detalhes nas paredes, não conseguiam desver o armamento pesado com que lidavam os carcereiros. Os equipamentos de segurança, os coletes, os rituais. Os telefones tocando. O secretário apenas aparentemente tranquilo, com o sangue a gelar por dentro. Chegaram ambos em procissão para a cabine da inspeção se poderiam adentrar aos presídio. Os oficiais pediram para esvaziar os bolsos. Mesmo telefones celulares não seriam permitidos, houve a retirada das baterias e foram postos em saquinhos plásticos. Não sabia o porquê, mas ele tinha pilhas também nos bolsos. Os oficiais não pareciam dar muita bola, pareciam confiar naquele jovem, filho do que levou a culpa, do pai infrator. Terminou de se apalpar e descobriu sua carteira fina, que servia apenas para o mínimo de documentos de identificação e alguma nota que houvesse sacado em banco. O carcereiro disse novamente para que não se preocupasse. Lacrou o saco plástico e o juntou a outros em uma gaveta. A mãe havia completado semelhante processo, ela que, pela idade idosa também estava recém aprendendo os trâmites da tecnologia através de telefone celular novo. Se separaram dona e aparelho e eles puderam adentrar à prisão das grades de ferro.

Olhavam para o corredor úmido de celas pela esquerda e pela direita. As paredes enganavam serem amareladas, mas o mofo e o gotejar das infiltrações escurecia o ambiente cada vez mais trevoso. Mãe e filho sabiam que adentravam um território hostil e considerado inimigo. Como dito, tudo era novidade. Era dia de visita, os prisioneiros, inspecionados, estavam "livres" pelos pátios. As famílias compareciam. Ele estranhou ver bandeiras e mais camisas do clube azul e amarelo da cidade. Imaginava uma legião muito maior do clube rival, por números absolutos que se observavam na sociedade, mas também pelo que imaginava no interior de uma prisão. Parecia mesmo um dia de jogo, uma torcida organizada com todos os seus apetrechos. Parecia um churrasco dominical, como costumavam organizar nos arredores do estádio, na praça central da avenida mais famosa da cidade.

Contornaram aquele grupo e observaram algumas rodinhas de conversa pelos corredores que levavam ao pátio, à luz do sol. Famílias conversavam, foram eles próprios se familiarizando àquelas cenas antes tão temerosas, tão incertas, tão restritas ao campo do imaginativo deles. No pátio, perceberam que haveria apresentação. Show de talentos, algo musical, alguma banda. Algo haveria. Se formava, de cadeira em cadeira, iam se organizando, uma verdadeira plateia. Enquanto nenhum número era apresentado, as pessoas naturalmente conversavam. Ele percebia como a mãe estava para desabar em prantos. Os olhos cada vez mais nublados, mais úmidos de sua ascendente prestavam essa informação indubitável. Ele apoiou a palma de suas mãos sobre os ombros da cansada mãe, pessoa que certamente não dormia em paz nas últimas noites - e talvez não mais alcançasse tamanho benefício para sua saúde, a boa noite de sono.

Tentava com as mãos sobre os ombros transferir algum gesto de sustentação, alguma energia para sua cansada matriarca. Sentaram-se em cadeiras de madeira no canto daquele pátio de paredes altas e gramado ao solo. Tudo ainda em tons amarelados, porém com menos mofo pela luz do sol que se fazia presente. Apesar disso, o acinzentar de suas mentes era inevitável. Tudo parecia mais nublado, era o filtro permanente sobre suas vistas. Esperavam por algo. Foram conversar entre eles mesmos, enquanto nenhuma alma lhes interrompia o diálogo, ninguém os oferecia suporte, aqueles desconhecidos do sistema prisional, os recém-chegados, os debutantes.

- Ele assumir a culpa mostrou que te ama mesmo. - Ela permaneceu calada. - Acho que foi melhor assim. - Apertou mais as mãos sobre os ombros da mãe.

Ele sabia que o casamento não vinha bem. Eles poderiam ter se divorciado. Seu par poderia estar distante, de volta para o estado de onde veio. Qual não foi a surpresa quando voltou para casa naquele dia? o corpo da velha estendido sobre o chão gelado da cozinha. A velha unindo-se ao plano como um gelo só. A mãe já sabendo das consequências que enfrentariam. Ele largando as compras no chão, com muito menos cuidado do que qualquer outra vez, mas sem também arrefecer e atirá-las para danificar ovos ou tomates, ou quaisquer embalagem que poderia amassar. Ele que foi até a pia da cozinha, lavou as mãos, depositou o detergente, enxaguou, secou na toalhinha pendurada na maçaneta da porta. Ele que mal perguntou quem, como e por quê e decretou ao final da breve conversa: - Eu assumo.

E assumiu. E foi julgado tendo assumido. E agora mãe e filho estavam armando planos, pensando advogados, o da família não bastaria, buscando soluções para tirá-lo daquele cárcere maldito. Daquela culpa que não lhe pertencia. Esperavam achá-lo ali pelos corredores, em qualquer uma daquelas celas, uns poucos permanecendo ali sentados sobre os colchões duros das camas, mirando imagens de mulheres seminuas ou tentando sintonizar algo nos precários e antigos aparelhos de televisão de tubo. Aqueles que não deveriam ter mais família ou membros familiares ou amigos próximos que se importassem, diferentemente dos organizados da torcida, dos envoltos, reunidos do pátio. O seu tinha família. Eles haviam combinado aquele primeiro dia de visita por ele. Alguns dias haviam se passado. Como ele estaria? Já era magro, já estava também envelhecido. Ele tomava remédios para controlar algumas taxas preocupantes. Estaria os tomando? Todas essas perguntas só poderiam ser respondidas com a sua presença, com a sua careca de formato capilar que sobrava inconfundível, teriam o reconhecido desde seu tamanho, desde sua silhueta, desde sua cabeça há metros e metros, centena deles de distância. Mas ele não estava lá. Onde será que estava? Por que havia sumido? Por que não os havia encontrado. Teve vontade de circular o mesmo caminho até a base dos carcereiros que lhes permitiram entrada, perguntar por ele, fazer ecoar sua voz por aquelas celas, mas seria um escândalo desnecessário e até inútil. Mas onde ele estaria?

A pergunta não queria calar em sua mente. A mãe permanecia olhando para o vazio, para o infinito. Para as lembranças. Para um casamento de três décadas - quase a quarta. A quarta por vir, mas seria na cadeia. Seria num desses domingos de reencontro. De dissolução novamente ao fim do expediente. De angústia insuperável. A separação entre aqueles que não descobriam que se amavam, que deixaram passar os anos sem se dar por conta disso. Ela permanecia em silêncio. Se uma banda, pela melhor que fosse, pela canção mais conhecida, pela mais insuportável ou mais extraordinária que fosse, subisse no improvisado palquinho de madeira, melhoraria ou pioraria a situação embalando um som de fundo para aqueles retumbantes pensamentos?

Ele nunca havia visto a mãe desabar daquela maneira. Se ao menos ela tivesse cedido antes da discussão derradeira que culminou com a morte da velha. Se.

- Se quiser, vamos embora - Disse.

- Não, nós temos que encontrá-lo - ela finalmente voltou a falar com ele.

- Podemos voltar outras vezes. Talvez com boas notícias.

- Tenho procurado os advogados - falou em tom de confissão, não sabia quem estava ao lado. Se poderia ou gostaria de escutá-la. Muita gente ainda ia pela companhia, sem esperança da soltura, seja por bom comportamento ou pelo que fosse.

Isso tudo da busca pela advocacia ele sabia. Estava procurando tanto quanto ela. Nem entendeu porque ela havia dito isso. Talvez para ganhar algo de confiança que no momento a angústia lhe carcomia. 

Uma criança veio sentar-se ali próxima. Percebeu que havia crianças por ali. Mães agora solteiras para criação daqueles pequenos, pais encarcerados. O que teria sido dele se fosse criado daquela maneira? Em que mundo teria entrado, em que mundo estaria? Tentou se intrometer na brincadeira daquela criança mais próxima, que se divertia, tentava se distrair com um cordão, brinquedo semelhante ao que ele tinha destinado para sua gata em casa.

Escutava-os também ao seu lado uma dessas mães de olhares distante. Um olho fiscalizava o filho pequeno, outro ia para o além. Ela também ainda desacompanhada do seu par. Talvez visitasse por ali muitos domingos. Talvez a própria rotina prisional já os separava aos poucos. Voltou o olhar para a sua própria mãe, desamparada, confusa, agoniada. Viu que pela primeira vez a corroía uma palavra que não a tinha visto sentir naqueles mais de 35 anos de casamento: o remorso. Jamais a tinha visto com remorso por ter casado, por ter brigado com ele tantas vezes, pela criação dos filhos, a irmã dele já distante, na Irlanda, sem os ver fazia anos. O remorso era uma palavra de extrema novidade para fazer visualizar no olhar de sua mãe. O remorso por ter sido a causa da morte daquela senhora. O remorso pelo marido dela ter aceitado se fingir de causador daquela morte, para protegê-la, por ele ter feito cálculos e constatado que era mais importante ela fora das grades do que ele. Tudo bem se ele fosse preso.

Mas agora mãe e filho pensavam. Ele que gostava de sair para a rua, de apanhar sol de verdade, horas por dia. Ele de pele eternamente bronzeada por isso, não somente de verão, como eles. Ele que mantinha a pele mais escura mesmo no inverno. Ele que praticava muito exercício físico, de dieta até bem saudável, pratos cheios e fundos, com comida de qualidade, com amigos do lado de fora. Ele acusado, ele chocando o bairro, ele sentenciado. Ela sem conseguir chorar direito diante daquela situação, mas que agora ela começava a assimilar. O remorso. O remorso que a corroía. O entendimento de que seria assim para um para sempre de longos anos, de extremamente longos dias e longas noites sem dormir. Ela que talvez não conseguisse mais dormir, como era seu passatempo favorito, seu recarregar de energias para tarefas domésticas e discussões como aquela que vitimou a velha palestrante, que ia de casa em casa. Erro que cometeram tê-la deixado entrar naquela tarde. Ela que desde que a velha havia desabado, batido a cabeça e perdido o pulso, sua voz sumira, saíam apenas resquícios, miados, palavras mal pronunciadas entredentes, quase inaudíveis. Ele que para voltar a escutar e a entender a mãe precisava quase de um tradutor, mas precisava acima de tudo de ler seus olhos. E nos olhos dela lia exatamente o remorso.

A mãe que em seguida tentou desviar o assunto, apresentar alguma resiliência, conversar com sua vizinha de cadeira.

- E este é meu filho. - Finalmente apresentou. - Ele parece chocado ainda pela prisão do pai, mas o que o deixou brabo mesmo, pude ler em seus olhos, foi que aquela menina que ele estava de olho agora está cercada por outros três a conversar com ela.

Ele olhou para a morena de cabelos pelos ombros novamente. Estava como ele a havia abandonado a vista, cercada por outros três, a conversarem e a rirem. Ele se envergonhou por essa conexão que tinha, por essa percepção incontornável de sua mãe. E ficou confuso entre perceber pela primeira vez naquela tarde um poder de reação dela quanto àquilo tudo, e também se espantar em como ela poderia fingir, ser dissimulada, cínica e gélida. Ao pensar em gélida sentiu novamente o pulso sem vida da velha senhora já enterrada, que deveria estar, naquele mesmo momento, recebendo as breves aclamações e pesares de sua missa de sétimo dia.

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