Foi após eu firmar o obituário de meu avô que ele deu para não morrer. Os dias no hospital arrastam-se, como o cinza ininterrupto desse mês de agosto. Os cães estão loucos, ensandecidos aqui em frente ao apartamento. São uns cuidados pela vizinhança, que lhes fornece alimentação e água, em troca de uivos para luas cheias e alguma sensação de segurança que eles transmitem. Mas o assunto é mesmo meu avô, que segue como uma partida de futebol esquecida de ser finalizada aos 90. Sobre a cama, com as canelas cada vez mais finas, com a musculatura a sumir conforme não come nos últimos tempos. Sobrevive pelo soro e perde muito sangue e muito líquido pelos problemas em seu sistema urinário. O câncer que teve pela próstata ameaça voltar, se é que já não voltou e falham na nomenclatura ao dito cujo.
Percebi a fragilidade do panorama de meu avô ao comprarem para ele alguns iogurtes da marca do solzinho, destinada preferencialmente às crianças. Aí chega o ponto em que eu queria adentrar, a, mais uma vez, semelhança entre o estado dos mais jovens e dos mais velhos. A necessidade dos cuidados de outrem. A impossibilidade de se virarem com seus próprios recursos. Para além da saúde deficitária do ancião, aqui em casa discutimos os valores financeiros que ele a cada dia nos custa, porque precisa de um revezamento de cuidadoras, com o preço pela casa dos 100 reais por turno. Entre duas, vão-se praticamente 200 reais a cada findar de tarde. A da madrugada recebe mais, o chamado adicional noturno. Algumas batem cabeça no horário, com atrasos ou impossibilidades avisadas em cima da hora, privando minha mãe de qualquer sombra de sossego.
Digo para minha mãe relevar essa situação, porque logo ele parte ou melhora. Estamos cientes de que segue mais próximo de partir, justamente por não ter forças mais para alimentação. Segue conectado às sondas e, a bem da verdade, em momentos de fúria e de últimas provas de rebeldia, arranca os cateteres posicionados em seu corpo. Quando questionado por um bem humorado enfermeiro, se, caso fossem soltos, libertados seus braços, se meu avô iria se comportar ou arrancar novamente os cateteres, o meu ascendente de raízes polonesas admitiu: "vou arrancar, sim." O profissional agradece a sinceridade dele e segue seus trabalhos, mantendo meu avô delicadamente atado, na impossibilidade de arrancar-lhe o que o mantém vivo.
Houve um caso de amigo de meu pai, um engenheiro bastante mais novo, que, ao se dar por conta da situação sobre a cama do hospital, arrancava os seus conectores da vida. Acabou realmente por morrer e talvez fosse isso que desejasse, após problema neurológico que o acometeu. Estar nessa situação vegetativa, sobre um leito e extremamente dependente de terceiros, deve afetar as percepções de o que é estar vivo. Eu, em tão melhor situação sinto esses questionamentos, imagino-me na situação deles.
Enfim, como uma criança, em que a memória oscila entre aprendizados ou nomes antigos e entre o esquecimento das coisas mais básicas recentes, meu avô segue lá com sua capacidade intelectual também cada vez mais fraca. Chama pelos que já não o podem atender, relembra momentos, traça resumos de sua vida passadas nove décadas. Aguarda pelo apito de encerramento e busca alguma compaixão com o temido júri do juízo final. Enquanto isso, permanece imóvel sobre a cama, tentando domar seus instintos rebeldes e alternando entre o cansaço, a fraqueza, mas também a disponibilidade em que desata a falar como em um dos últimos confessionários.
Sem mais poder nos oferecer as cadeiras que bem construía nos conhecimentos da carpintaria e com um leque de piadas cada vez mais reduzido, meu avô vai se apagando, mas mantendo acesa sobretudo a discussão de quem arca com seus últimos dias, entre cuidadoras que levarão mais do que dois salários e sua possibilidade de alta ainda não se sabe para onde, entre as existentes casas geriátricas ou os aprontes da filha da esposa de seu segundo casamento. E, para meus compromissos com a verdade, nunca ouvi tanto sobre meu avô como nesse último mês. Talvez, se organizássemos a massa de tópicos sobre uma gangorra, o mês atual venceria o total de vezes em que ele era mencionado em todos os meses anteriores em minha casa. Em resumo, nunca se falou tanto dele. Nem tão bem, nem tão mal, mas apenas cada um avaliando onde pode inserir-se nos cuidados feitos, em contravontade, mas querendo manter uma imagem perante a família e a sociedade, além de uma aparente consciência tranquila. Próximos capítulos nos aguardam.
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