Mesmo envolto a filmes de terror nos últimos dias, me surpreendi tamanho plano ousado que minha mente ornou. Percebia uma casa muito cinza e afastada, por onde transitavam muitas pessoas que eu desconhecia. O movimento intenso daria ideia incluso de um comércio, bazar em funcionamento, mas não era o caso. Era como se morassem ali ou ali estivessem refugiadas e assim poderia ser também o meu caso. Ou o que eu fazia por ali? A casa tinha um aspecto acolhedor, mas decadente. Era a morada, mas era estranha. Era uma casa de proporções esquisitas, onde poderíamos associar sua figura a um grande templo. Fato é que as sensações que nos causavam eram meio horripilantes, sem saber o que decerto iria ocorrer logo adiante. A suspeita eram dos moldes da bruxaria.
Entre tubos de diferentes tamanhos e formatos que se amontoavam sobre os móveis, como se esquecidos ou recém-usados e ainda não passados pelo lava-louças, lembro de aparecer por entre meus dedos um bilhete. Um bilhete tão misterioso quanto todos os entornos daquelas curiosas cenas. Tentei fixar meus olhos somente naquele papel parcialmente amassado e em caligrafia apressada ou relaxada quando foi manuscrita. Seriam códigos que fugiriam a meu entendimento? E o fluxo de pessoas, ora tão numeroso, tudo desaparecia e as trevas se faziam presentes, como se de repente uma vela fosse rapidamente assoprada, transformando o estado cinzento em mais trancafiada e aprisionante penumbra.
Percebo esse código em papel de repente em outro espaço, quando me deparo em uma espécie de shopping, talvez semelhante aos estabelecimentos Angeloni de Criciúma, ao sul de Santa Catarina. Era semelhante àquele estabelecimento ou de lá lembrei por causa do número musical que se apresentava: um músico diante de uma razoável plateia. Conforme ocorre com os músicos de centros comerciais, as pessoas mais seguiam suas atividades de admirar vitrines ou seus telefones celular do que prestavam atenção, mas sempre uma quantidade reduzida também o escuta e acompanha das melodias. Pois outro músico, talvez transformado em eu mesmo, se depara, após o dedilhar de algumas notas que está sozinho. Tão sozinho quanto na penumbra daquela casa cinzenta e esquisita.
Ele olha ao redor e, com o perdão da utilização da letra daquela música, acha melhor parar de olhar. Ou ao menos parar de tocar. Ninguém o escuta. Pois o código. O código o é entregue mais uma vez. Por alguma mão sorrateira que por ali passa, ou surge diante dele, como na superfície de alguma mesa próxima, ou mesmo o músico o encontra de seu bolso (como é possível surgir assim do nada?). Enfim, ele tem o bilhete em mãos, olha atento àquela combinação ridícula que lhe foge aos conhecimentos em significado. Mas tem para ele que aquela é a salvação de sua carreira musical. Ele precisa copiar aquele código para acessar ao sucesso. Para, ao menos, copiar seu parceiro que tocava para meia dúzia, dúzia inteira ou até três ou quatro dúzias de gente num shopping estilo estabelecimentos Angeloni em Criciúma.
Ele precisa ser escutado, é sua razão de ser e existir, ele não se importa, naquele momento, de fazer o tráfico com o mais temido diabo em troca de sua merecida plateia. A razão da existência musical, tocar para alguém ouvir. Ele aceita os termos de uso e sai em desembaraço do código que sacie sua vontade de receber os louros advindos de um tímido aplauso ao final de cada canção - algo do tipo. Com o código transcrito para sua mente ou para outro papel, ou dito em voz alta, na tentativa da convocação do diablo que lhe conceda a glória, o músico (será eu?) é novamente transportado.
Está agora em uma estrada vazia, sabe que essa mesma estrada vazia, interiorana, sem residências que a circundem, leva em direção àquela mesma casa sinistra, deslocada, opressiva, cinzenta e morada dos mais impiedosos segredos e feitiços, dos confins porãonizados da humanidade. Mas, ao manobrar uma camionete - ou desta mesma camionete ser apenas um secundário personagem no banco de carona - o músico atolado até o pescoço com as bruxarias se depara com uma cena de lhe tirar o fôlego. E ainda bem aqui tratamos de um músico de instrumentos de corda e não um soprador de saxofone, por exemplo. Isto porque sem o fôlego ele fica ao deparar-se com uma fileira de corpos em um pequeno vale - talvez escavado - que se desenha na estrada. A estrada é vazia de movimentos e entulhada de neve. Sobre essa neve estão deitados uma parelha inteira de corpos. Os corpos ele custa a assimilar se são humanos ou de algum antílope que por ali habite, onde Canadás será que estava? São humanos ou são alces depositados sobre a neve? As autoridades sabem desse absurdo? Onde está a sua camionete? Era o carona e foi chutado pelo motorista, para observar àquela audaz e impiedosa cena? Sejam alces, sejam humanos deitados naquela clareira que muda radicalmente os tons inebriantes do constante volume de neve que se acumula pela estrada, sejam do que forem aqueles horripilantes corpos antes escondidos, sejam esquecidos ou lembrados, ele tem certeza de uma única palavra sobre aquela quantidade de corpos: sacrifício.
Nenhum comentário:
Postar um comentário