Ana havia estranhado que conhecia nenhum daquelas dezenas de passageiros. Ela já havia feito aquela viagem também dezenas de vezes, entre a região metropolitana e sua pequena cidade, Sertão Santana, ao sul de Porto Alegre, rumo ao Sul do Sul. Viu cada pessoa mecanicamente demonstrar o bilhete ao cobrador, que era um mero assistente do motorista. Ela impulsionou com dificuldade sua mala de rodinhas para o degrau correspondente das entranhas do ônibus. A bagagem de mão colocou a tiracolo e se dirigiu também para o interior da nave. Escolheu um bom lugar, deu-se por conta, nem tão atrás, para perto do banheiro, nem tão para frente, onde sentia-se inoportuna, como se atrapalhasse o trânsito dos transeuntes que embarcariam depois, embora dessa vez ela fosse uma das últimas a subir a bordo.
Deu uma última olhada pela janela que já iniciava o processo de embaçar-se pelo fluxo de respirações daquele diminuto enxame. Diminuto, porque, por conta da pandemia, o número de passageiros era reduzido no local e o acesso era restrito aos portadores de máscara. Ela aproveitou o espaço disponibilizado pela poltrona ao lado e melhor aconchegou-se. Afundada no conforto que lhe era disponível, mergulhou os olhos para o interior de sua mente, mantendo a visão encoberta pelas próprias pálpebras. Antes, verificou se a playlista de seu dispositivo conectado ao aplicativo Spotify estava de acordo com suas vigentes exigências. Estava tudo em ordem.
Ana acordou achando que havia perdido o horário. Sabia que a viagem não era tão longa quanto quando vivia em Rio Grande e o ir e vir da região metropolitana lhe custava mais no dinheiro das passagens e mais horas empobrecidas por escutar somente suas repetitivas canções, vez ou outra alternadas por novas descobertas dos últimos tempos. Sabendo que Sertão Santana não distanciava-se tanto da capital do estado, era possível que houvesse cochilado e perdido a saída. Mas, ao olhar pela aparente normalidade em sua volta, concluiu também que se perdesse a hora de saltar seria notificada pelo mesmo assistente que apoderava-se de seu bilhete no embarque. "Estava tudo em ordem", repetia mentalmente para si mesma, talvez balbuciando o final da sentença com a ponta dos lábios.
Mas uma coisa chamou sua atenção a um par de segundos depois. Mirando em frente, para a poltrona imediatamente dianteira a seu nariz, notou que o nome da empresa era DATA, diferente da que muitas vezes viajou, a DATC. Primeiro sentiu-se delirante pelo efeito sonífero de suas horas de inércia e resolveu contrapor a vontade dos especialistas em tempos pandêmicos (os infectologistas) e passar as costas dos dedos, os nós sobre os olhos. Retirou qualquer princípio de remela que se formaria naquele lapso e correu panoramicamente a vista, em um movimento traveling, como a câmera de um filme rodado em primeira pessoa. Notou o pior, para certificar de que o erro não era o captado pelos olhos: todas as poltronas, mais cerca ou mais longe, informavam que a empresa de transporte que a conduzia a Sertão Santana (ou para onde?) era a DATA.
Em seguida, notando a ainda total apatia e tranquilidade dos demais passageiros mascarados, sem reconhecer um único rosto que lhe fosse comum do cotidiano de pacato município emancipado em 1992, tentou adivinhar as respostas com seus próprios recursos. Trazia consigo um cafona relógio de pulso, que, para sua surpresa, o descobriu travado em um horário muito próximo ao de embarque. Como poderia isso? Em seguida, sacou da bolsa o celular que traria a resposta do horário e outras tantos, tudo isso ao alcance de poucos códigos a serem destrinchados pelos inquietos dedos. Mas, ao tentar a senha para liberar a tela inicial, foi surpreendida com o acesso negado. Tentou novamente. Ora, Ana, acorde logo, está perdendo tempo errando coisas que nunca erra. Um relógio de pulso com problema de bateria, um celular com bateria, olha ali, 93%, mas trancafiado pelo seu eleito esquema de segurança. Tão seguro que agora nem ela conseguia liberá-lo ao uso. "Droga" - exclamou e era possível que seus passageiros vizinhos pudessem ouvi-la a lamuriar.
Um senhor que apenas tentava esconder o bigode proeminente sob a máscara, com um rosto magro que lembraria o de um personagem Mario Bros envelhecido, a observava com um olhar atônito, circundando a barreira do indiscreto, diria-se. Percebeu, como era de costume, a quantidade significativa de população velha no veículo. Estranhou que, pelo tanto que pensava ter dormido, não havia sinal ainda da chegada ao município de Sertão Santana, ela que praticamente decorava cada buraco que o ônibus colidiria na estrada, fazendo balancear-se suas 18 toneladas sobre. Ficou cada vez mais inquieta e passou a tamborilar com os dedos, que lhe restava fazer?
Não queria utilizar o banheiro do veículo, pela pandemia e porque nunca quis, nem em outros tempos, claro que não queria. Mas resolveu ir para lá, dirigir-se aos fundos, 50% da intenção para realmente aliviar-se, fazia tempo não urinava, outros 50% para tentar puxar uma conversa sobre a demora da viagem e descobrir o que estava acontecendo. Trôpega, mas nem tanto, observando que a estrada devia ter sido requalificada desde a última vez que deixara a capital para aqueles rumos, a visitar seus pais, eles já vacinados, ela ainda não. Apoiou levemente a mão somente sobre algumas poltronas, tomando o devido cuidado de encostar em nenhum topo de cabeça, entre aqueles pelos grisalhos do que um dia foram louros, outros plenamente entregues à calvície.
Não viajava com os óculos para leituras próximas, provavelmente estava estojado para dentro de sua bolsa, que permanecia inerte sobre a poltrona enquanto ela tentava entender aqueles símbolos escritos à porta do banheiro, quando estava interna a ele. Havia um aviso, desses das companhias de transporte sobre o bom uso dos dispositivos e também haviam algumas pichações que desocupados faziam ao fingirem-se de ocupados com as necessidades fisiológicas: jovens. Cada vez mais tonta, criando quase uma poderosa vertigem, deu a descarga, lavou as mãos e começou o caminho inverso ao que fizera. Inclinou-se um pouco, quase de joelhos, distribuindo sua massa para equilibrar-se a algum desavisado solavanco. Queria assim tomar a atenção de uma senhora. Ignorou o distanciamento social em busca de derradeiras respostas.
- Demorando a viagem hoje, né, senhora?!
Nada de resposta. Ela não parecia ouvir direito. Com a noite que caía, o semblante em frente, em riste, queixo levemente arrogante.
- Sabe se falta muito para Sertão Santana? - Insistiu Ana.
A senhora dessa vez se virou, entre o bruscamente da surpresa de alguém falando com ela, que parecia absorta em qualquer pensamento que o valha, e o calmo e sereno de quem não devia satisfações àquela intrometida. Com a boca coberta pela máscara, a senhora não hesitou em enrugar, franzir a testa o máximo que pôde para exprimir seu total desconhecimento sobre o que a desconhecida falava. Não havia modo de se entenderem.
- Desculpe - disse por último Ana, já embrenhando-se pelo corredor rumo ao seu lugar, nem tanto atrás, nem tanto à frente. Arriscou uma olhadela para trás e certificou-se da cena que a vez rubrar por sob a máscara, mas sem que pudesse esconder a transmissão de sua vergonha: a senhora a encarava, aparentemente ainda incrédula pelo encontro repentino.
Ana quase errou os passos, por pouco seus joelhos não conheceram deliberadamente o solo do corredor, precisou apoiar as mãos mais do que gostaria. Para completar o vexame que só ela (e a senhora?) sabia carregar, encostou na careca de um dos vovôs à sua direita. Era um princípio de pesadelo, sem dúvida. Maior ainda tornou-se quando o ônibus, com Ana já recostada, querendo proteger-se de corpo e extremidades todas para dentro das roupas, tal qual uma tartaruga em modo de defesa, na falta de uma terra fértil para o movimento do avestruz, o ônibus guinou em curva à direita, à qual Ana não fazia ideia de qual entrada significava aquele trajeto. Deparou-se ela pela janela que tratava-se de altos e góticos portões de ferro retorcido em bonitas e trevosas formas e pintura. De pronto não sabia se aquela bem retocada pintura a assustava ainda mais no tom brilhoso do negro ou se uma ferrugem tornaria tudo mais decrépito e inacreditável. Uma placa confirmou sua total e horripilante suspeita, aponderando-se de si uma realidade inacreditável: estava ela, pelas formas vistas ao longe, não mais pela leitura embaçada de seus olhos de perto, placas que indicavam que ela estava em algum lugar perdido e oculto pelo leste europeu.
Como sair dali?
Nenhum comentário:
Postar um comentário