"Radical é o cara que quer dar casa pra todo mundo. O que acha que tem que metralhar a PTzada temos que respeitar a opinião.
A vida não é tão sagrada quanto a propriedade privada."Assim comentou o amigo Rogi Vieira, de Porto Alegre. No caminho para casa neste dia 19 de novembro, estava pensando justamente sobre o depoimento da amiga Denise Crispim, em São Paulo. Quando referi em texto anterior sobre as obras que emocionam pessoas, o calçamento de ruas nas cidades menores, ela propôs a correção de que esse fenômeno não é único aos pequenos centros. Nas capitais, o povo também é emocionado pelo trânsito, pelo que modifica uma via, um asfalto, um viaduto. Obras gigantes muitas vezes, com custos elevados, com demora, com licenciamentos estranhos, com o milagre dos números diante de nossos narizes. Empreiteiras e engenharias que lucram. Superfaturamentos e obras temporárias que se estendem até a vasta impressão do permanente.
Essas modificações transitórias no fluxo de veículos interessam e emocionam as classes média e mais altas. Principalmente as mais altas, onde eu sempre questionei a necessidade de super carros em vias tão deficitárias, além da necessidade da blindagem, em cidades como o Rio de Janeiro. Acessórios inacreditáveis pra estrangeiro saber. As classes patronas acabam apoiando, aprovando e votando por esses 'benfeitores'. Os empregados dos patrões tendem a seguir os mesmos caminhos. É também uma questão de identificação. O trabalhador, muitas vezes ausente com a tal consciência de classe, acaba enxergando no patrão o seu espelho superior, o seu almejo, o seu desejo máximo. Se patrão ou patroa votam no engomado, por que não eu, que almejo isto?
Mas no caminho para casa desde 19 de novembro eu pensava, pelo trânsito, como uma obra, uma via asfaltada, para quem somente passa por ali e não efetivamente mora, aquilo significa um benefício efêmero, curtíssimo, um minuto ou dois a menos de estresse no ir e vir. Às vezes segundos dependendo o trajeto. Vai evitar um arranhão no cd no carro ou que o acessório pule alguma música em algum impacto maior, causado por buraco ou pedras irregulares no calçamento. Para esses patrões e patroas, ou mesmo trabalhadores que por ali passam, a obra significativa, de encher os olhos, é um benefício curto a cada dia. Somados, podem até fazer significativa diferença, mas...
Mas pensemos na primeira frase proposta pelo amigo Rogi Vieira. Chamam de radical o político que pretendem - pasmem - dar casas à população. Moradia, item básico. Paredes, teto, quartos, onde comer, usar banheiro e dormir. Isso é ser radical na concepção que adotam. Penso que uma moradia, um auxílio-alimentação, a própria bolsa família, isto é uma mudança significativa na vida de uma mãe, de um pai, da família, com seus filhos. É arroz, é feijão na mesa. É suco para beber.
Nosso egoísmo capitalista impõe que a obra de uma rua, um asfalto seja mais importante que o básico para uma família viver. Um almoço, uma alimentação digna, uma casa para acomodarem-se. Como podemos formar uma sociedade tão cruel, tão propriamente egoísta, tão exaltadora da propriedade privada? Como isso não nos envergonha, como as pessoas não coram, como não enrubescem a face diante de calamidades como essas? O desconhecimento das secretarias de cidadania de cada município. As imensas filas de espera pelos auxílios, pelos recursos, pelas distribuições que mudam de fato a sobrevivência, o manter-se vivo de cada cidadão e cidadã.
Como nos afastamos tanto da consciência de classe, da consciência de meio social, da consciência que dividimos a cidade com pessoas que não têm o mínimo ou que dependem dessas migalhas como os seus máximos para sobreviver? Como nos afastamos de que convivemos no mesmo centro urbano? Só lembramos de tantos casos quando nos aprisionamos no medo, quando sentimos o receio de um assalto ou roubo em nossas casas? Justamente casas, casas que tantos não possuem. Assistimos a programas estrangeiros e, a partir desses objetos estranhos e distantes, relembramos nossas mazelas próximas, nossa sociedade em caos. Não é preciso assistir ao filme sul-coreano Parasita para lembrar que pessoas perdem todos os seus bens em dias de chuva torrencial. Não é preciso a situação dos moradores de porões para lembrarmos que tantas pessoas, de fato, não possuem o acesso à residência decente, seja pelo preço dos terrenos, dos imóveis, dos materiais, dos aluguéis ou mesmo da manutenção só possível através dos impostos.
A brutalidade contra as vidas
Não precisamos também ir aos Estados Unidos pelo George Floyd, se tantos brasileiros negros estão morrendo a cada dia, pela violência policial, pela violência imposta nesses bairros, pelo tráfico de drogas, por uma sociedade que é, sim, racista. Eu escrevia este texto em 19 de novembro, às vésperas do Dia da Consciência Negra e fomos surpreendidos pela proximidade do que ocorreu. A morte do sr. João Alberto, em Porto Alegre, um assassinato cometido por membros de uma empresa de "segurança", que atuava no hipermercado Carrefour, mas também atua em outras redes, para outras lojas. O desgosto máximo pela brutalidade que foi presenciada.
Eles eliminaram a vida de um homem negro como se ela fosse nada. Reduziram a menos do que um produto de prateleira de hipermercado. A violência simbólica bateu no teto. Um homem negro ser morto dessa forma, por seguranças brancos. Um com cargo policial. Novamente o envolvimento da polícia. A mesma polícia que mata em morros, em favelas, em periferias, todo dia, todo santo dia no Brasil de muitos George Floyds. De crianças expostas a esses riscos, a essa brutalidade, a essa violência, de homens e mulheres, adultos que somem. Mortes violentas, desaparecimentos, silenciamento, nenhuma investigação, muitas vezes com nenhuma "corregedoria", nenhuma solução, nenhum sopro da tal da justiça.
O intuito do texto era sobre o radicalismo que atribuem a Guilherme Boulos, que pretende, como missão suprema, poder dar residências à população, aos sem-teto. O caso chocante da morte, do assassinato de João Alberto direcionou outro foco para quando me aproximava do fechamento desta 'edição' de 20 de novembro. A violência que pregam contra quem não tem onde dormir ou o que comer, a violência que seguem pregando mesmo quando você participa de locais, de mercados constituídos, visitados pela classe média. Essa violência cerca e faz sua bandeira na nossa sociedade. Contra os sem-teto, contra os sem-terra, contra os negros em qualquer esfera social, dos primeiros grupos citados até a classe média econômica, porque ele é visto como estranho, porque ele é visto como potencial ameaça, porque ele é sub-julgado, porque ele é hostilizado, porque nossa sociedade é racista de formas mais brutais, agressivas, mas também de maneiras mais veladas.
Nem sempre é a imagem chocante das pessoas vivendo nas ruas, da crackolândia em São Paulo ou em outras cidades, nem sempre é um assassinato gravado dos holofotes de um hipermecado com luzes de neon em uma capital brasileira, às vezes é no interior, às vezes é na capital, mas nos bairros periféricos e nada muda. Nem sempre é tão chocante e presenciável, nem sempre gera essa revolta toda, como houve protestos por todo o dia 20 em várias cidades brasileiras. Às vezes é velado, às vezes é silenciado, às vezes ninguém ouve a voz de quem protesta, às vezes não damos bola. É por isso que não é só dia 19 ou 20 de novembro, não é só nesta semana. É pelo ano inteiro. É por nossos amigos, mas é por quem mais precisa e sequer conhecemos. É por quem mais grita e não é ouvido. É para lembrarmos diariamente. É para repensarmos nossos papéis sociais, nossas prioridades, nossas propriedades, nossa participação nisso tudo. É para ouvirmos mais, darmos mais voz, combatermos o fascismo de qualquer mecanismo, de qualquer direção. Uns fascismos mais instituídos, mais institucionalizados, outros querendo colocar novos ovos dessa serpente que devemos combater dia após dia, ano após ano. Quando ela estiver reduzida, não baixarmos a guarda, porque ela sempre pode se propagar. Mas lembrarmos que está longe de ser aniquilada, está em pleno combate e está nos vencendo.
E o pior, está vencendo muita gente todos os dias. Nas heranças do fascismo, do racismo e do capitalismo, que providencia que as prateleiras sejam mais protegidas do que as vidas. O episódio contra João Alberto em Porto Alegre é um exemplo completamente contrário da fala que "vidas negras importam". A de João, pela ação de nenhum cabimento dos assassinos, não importou.
Que cada George, que cada João nesses casos de bestialidade e brutidão, revoltem o suficiente para sacudir estruturas e que menos vidas sejam assim ceifadas. Porque, embora façam parecer e desvirtuem para que não nos importemos com esses casos, essas vidas importam e muito. Muito dessas heranças fascistas irá permanecer, mas as coisas não poderiam ficar assim.
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