Aos 19 anos passou por uma experiência traumática e prometeu ser uma pessoa boa dali em diante. Acontece que, pelas circunstâncias e vontades próprias, não conseguiu cumprir em diversos momentos. Mas não importava mais, pela promessa estava amaldiçoado para o todo o restante do tempo vivo. Desde aquela ocasião, na juventude boba e trôpega que promete besteiras como a que ele fez, não tinha mais como voltar atrás.
Cada vez que iria sair da linha, uma música alta amaldiçoava seu cérebro, interrompendo o circuito correto das sinapses, transferindo a comunicação esperada dos neurônios para alguma valeta de endereço desconhecido. Tudo jogado ao vácuo de uma lixeira inexistente, de ideias que não chegavam a se concluir, de pensamentos desconexos e apenas o som, as batidas da música alta e mirabolante, interrompendo o sistema nervoso central de pobre indivíduo.
E a linha que ele precisava caminhar era bastante tênue. Nada de agredir colega de trabalho, nem em pensamentos, estes que estavam sempre fiscalizados policialmente, com julgamentos severos por parte dessa força maior que acionava o dj automaticamente. Nada de julgar a roupa das pessoas. Nada de perder a paciência com funcionários que lhe atendessem de forma desordenada ou preguiçosamente. A vida dele estava sempre por um fio.
Se arrependia seguidamente daquela promessa deslavada, descabida, que a inocência dos seus 18 anos provocou uma reviravolta tamanha que talvez nem se internando em um mosteiro poderia resolver. A música alta poderia vir da casa vizinha. Se mudou. Poderia vir do apartamento vizinho. Se separou da mãe, que sofria tanto quanto ele com aquelas tragédias acústicas. Mas mesmo longe da mãe, a música ainda vinha perturbá-lo. Era um alto-falante que muitas vezes só ele ouvia. Nem sabia de onde vinha, mas ali estava. Agressivo, bloqueador, intrometido. Foi piorando seu estado mental em uma regressão de meses. Quando completou cinco anos do problema latente, a medicação anunciada já não dava conta e acabou em hospício.
Pensava uma boa relutar contra esse problema na solidão. Tinha colega de quarto, tinha enfermeira, tinha direito a três refeições diárias, ele que era magro e já não comia muito desde o fim da adolescência. Quando todos almejavam e muitos atingiam o sossego da madrugada em referido hospício, a música, quando ele projetava seus sonhos e o que era possível no amanhã, as canções indescritíveis vinham atormentá-lo. Não havia mais para onde ser levado. Nem pai de santo resolveu, saindo da medicina convencional para o extrapolo das crenças mais distantes. Recorreu a pelo menos três religiões, com mestres de cada uma muito interessados em suas resoluções, mas nada conseguiam fazer.
Ele brotou pulga atrás da orelha dos mais céticos. Era um caso realmente muito estranho, mas nenhum médico solucionava apaziguação. Como costumavam dizer, a paz realmente não está à venda nas farmácias. Se ele não estava crendo em Deus antes disso, agora tinha a plena imagem dele bastante rigoroso e sem dúvidas absoluto, fiscal de cada movimento seu, seja com o corpo e sobretudo com a mente. Nada passava despercebido. Ele não conseguia mais arriscar um olhar torto para as pernas da enfermeira, ou desejar que outro louco daquela ala parasse de gritar, nem que fosse a base do homicídio.
Percebeu, ao final das contas que desejar o homicídio dos terceiros impostores de sua paz não resolvia, então partiu para o suicídio. No seu velório, poucas pessoas compareceram, entre elas sua mãe, que estava mais envelhecida e cansada depois da separação do que na problemática convivência. Os responsáveis pelas diferentes religiões que ele frequentou estavam presentes, mas quem tomava a palavra era o católico, dono de maior atenção e recebimento pelos poucos invitados/comparecidos. Quando o sacerdote tomava fôlego para anunciar as palavras que tentariam salvar aquela paupérrima e sofrida alma, um carro de som inflava protagonismo pelos decibéis. Os convidados se olharam, mas ninguém descobria de onde vinha. Parecia muito próximo, do estacionamento do cemitério. A rua principal que ligava ao destino pós-necrotério era muito distante. Enfim, sem entenderem de onde vinha tamanho som alto, tiveram impressão que o descanso para aquele peregrino da desgraça, ainda estava recluso.
- Por que ele não furou os ouvidos? - Sussurrou um desconhecido dos familiares em primeiro grau.
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