Uma boa história deveria começar com uma boa motivação. Certo? Não sei. Esta então não é uma boa história ou, se considerarem que é, ela quebra o paradigma, porque havia nenhuma motivação decente para justificá-la. O fastio, o tédio, o desequilíbrio mental podem aflorar e descambar acontecimentos que se desentrelaçam como a um novelo de lã. Parece o caso aqui referido a seguir.
Edevan era um despropositado. Vivia entre a preguiça dos trabalhos considerados sérios e a traquinice incontrolável a respeito das bobagens que inventava. Certa feita já assomava seus 20 e poucos anos e, portanto, via os amigos em desenvolvimento na composição de famílias e escalas empregatícias. Ele? Nada. Avulso, entre camelódromo e farras inconsequentes. Mas Edevan queria praticar algum grande feito, por mais idiota que assim fosse. Foi comendo um sanduíche na praça de alimentação dos camelô, trocando uma ideia com Jones que brotou nele a seiva da ideia criativa.
Jones era bom fotógrafo, embora não tivesse uma câmera de assim alta resolução. Mas desembocou a mostrar fotos que tirara com o celular e o Edevan se interessou em especial numa noturna, que captava o letreiro do Hotel Manta. Palhaço autenticado que era, Edevan tinha a maestria na destreza com os tais dos trocadilhos e imaginou que uma falha proposital no letreiro concluiria seu plano. Acontece que o Hotel Manta era conhecido pelo mais alto da cidade, que escalonava um padrão de metrópole. "Megalópole" para os avoados megalomaníacos de plantão. Enfim, uma obra sua no letreiro iria expor a falha para meio milhão de pessoas. Pensava ele assim, porque meio milhão soava muito mais grandioso do que 500 mil.
O Manta era um hotel antigo e reconhecido, com seu glamour de receber os principais visitantes do, embora crescido, pacato município de pouca eventualidade. Alguns congressos, coisas universitárias que reuniam pessoas de fora, algo muito mais de micro do que de macroempresários, além eventuais partidas de futebol serviam de cardápio de eventos da cidade que ainda contava com uma praia para fugidas urbanas de sua própria população, atraindo poucos turistas pela dita cuja.
Mas o Manta. O Hotel Manta era bastante alto, postura grandiloquente de capitaneador das vistas de quem cruzava o centro da cidade. Edevan pensou em se alistar no quadro de hóspedes, mas reconheceu que não possuía muito do cargo e do encargo de contribuir com tais taxas. Precisava de uma postura mais empresarial, pensava ele, além do mais não desfrutava da grana para um eventual pagamento adiantado, requerido pelo atendente ali do térreo. Inferno.
Mas bolou que de altura não tinha medo e por isso poderia escalonar a missão pelo lado de fora mesmo. Homem-Aranha seria? Deu-se por conta de que não precisava de tal manobra tão arriscada, embora riscos houvesse. Havia no Hotel Manta uma virtuosa escada de incêndio. Não parecia utilizada havia vários anos, porque dali não se sabia de história de incêndio. Mas Edevan pensou pela comunicação entre os quartos. Correria o risco de ser visto por algum ocupante. Pela vista proporcionada do Hotel para as luzes (ou ausência delas) no centro da cidade e bairros mais adjuntos do que periféricos, muitos clientes poderiam estar vislumbrando a noite e serem surpreendidos pelo jovem pelo lado de fora. Pensou no risco de o verem lá de baixo e raciocinou que esse não corria, porque os moradores da cidade estavam acostumados àquele visual diário, em que nada mais os encantava, enquanto os poucos visitantes, pelos riscos da violência de se mostrarem designadamente turistas, evitavam olhar para cima em busca dos topos dos modestos arranhacéus.
A bem da verdade aí cruzam-se informações contraditórias, pois a escada de incêndio era um convite para os impostores e arruaceiros tentarem uma entrada triunfal para o interior das entranhas dos quartos. Disfarçado de sistema de alarmes, travas e seguranças, Edevan fez ele próprio o teste ao perguntar na recepção do hotel sobre a seguridade de seus hóspedes, oferecendo seus falsos serviços. O recepcionista não o decepcionou, apontando que os quartos eram muito bem trancafiados por dentro, a gosto e orientação de seus hospedeiros. Ao preencherem o formulário de requisição dos quartos, os clientes eram avisados para manterem-se de janelões fechados e alertas a ruídos que fugissem do estranho e subjetivo conceito de normalidade. Edevan seria essa exceção noites após.
O nosso (anti)herói estava em grau de obstinação de concluir sua abilolada missão que chegou a treinar seu temor por alturas no apartamento de um dos poucos amigos pelo centro da cidade. Em uma diferença gritante, entretanto, experimentou apenas a exposição da altura de um sexto andar, enquanto o Hotel Manta dispunha de pelo menos 16. Quase isso, quase isso, repetia para si mesmo. Questionado do porque fazia o experimento no apartamento de Gustavo, o Edevan temperava o suspense com frases de efeito como "quem viver verá". Um pegadinha esse tal de Edevan.
Edevan chegou a ler sobre os riscos de escalar um prédio de 16 andares e leu sobre um macaco que tinha feito a proeza na cidade de Araçatuba. Concluiu que ele, Edevan, superaria o fruto da natureza por sua massa cinzenta adiantada. Polegar opositor, etc, nunca viram o curto documentário Ilha das Flores? Edevan calculou então em qual noite de tempo bom e menos lua, para não ser tão visto, rumaria até o topo do Hotel Manta.
Lá era uma quarta-feira de futebol pelo Brasil e América do Sul quando Edevan, frustrado pelos maus resultados do seu Internacional, resolveu abandonar a visibilidade do jogo semanal e partir rumo a sua missão. Ele havia cursado os primeiros semestres da Eletrônica no Instituto Federal e, embora não trabalhasse exatamente com isso, apesar das vendas das mais variadas no camelô, ele sabia que isso de agora adiantaria para concluir o que pretendia.
Edevan sabia que a parte mais difícil era começar o trajeto pela escada de incêndio. Sabia que o hotel dispunha de seguranças pela frente e pelos fundos. Mas embora não fosse fã de futebol a ponto de não perder os jogos, percebeu que o segurança da escadaria dos considerados fundos estava um pouco distraído mirando para uma vidraçaria não espelhada de restaurante, ou seja, conseguia, em olhar biônico, absorver algo do conteúdo futebolístico. "Perder tempo com outro 0x0", murmurava Edevan enquanto, trajado todo de preto para melhor camuflar-se à noite, começava sua longa caminhada até o topo do trem.
Obstinado, seguia as lógicas de encarar (ou não encarar?) o medo e só olhar somente para cima. Para baixo daria ruim, sabia disso. Quando se percebeu o guarda já era problema passado e se avistava à altura do quarto andar. Mais três e já superaria seu recorde pessoal no apartamento de Gustavo. Ventava um pouco que o assobio da noite era inevitável. Edevan tremia sua casaca preta lá de cima, os cabelos aprisionados em gorro para absolutamente nada de sua genética-estética chamarem a atenção no sombreado vacilante da missão. Percebia enquanto engolia em seco pelo assombro do interior dos quartos que o hotel estava na verdade era muito vazio. Uma ou outra luz acesa em ação no ato de iluminar. Concluía que estão tudo em congresso os congressistas ou vendo o jogo os visores de jogo ou que a praga do hotel estava esvaziado por conseguinte. "Quem mandou cobrarem tão caro?"
Foi apegado à altura do nono ou décimo andar pelo sentimento de raiva daquela sociedade que possuía quartos do tamanho de casas, banheira, aquecimento, tudo o que fosse, televisão a cabo, frigobar e lá de baixo algumas das formigas não se mexiam no ir e vir dos carros, pois estavam a dormir nas ruas, embaixo de toldos e marquises, tapadas por suas improvisadas camadas acobertadoras. Sentiu o quão idiota era seu plano, mas já que estava ali, após dias de planejamento, prosseguiria.
Visualizava o topo nas já cansadas pernas de quem só vinha fazendo exercício para correr de trás de ônibus na Osório, após a subida da Floriano, de onde trabalhava em seu final de rua, quase Fragata, ainda Centro. Ofegante pelos pulmões esfumaçados de carteira diária de cigarros, Edevan sabia que agora nada o deteria. Checou os bolsos e estava com o necessário para desarmar o que desarmaria.
Percebeu que do último andar para aterrissar no terraço precisaria de um salto de mágico impulso. A escadaria de incêndio só ia até a última ocupação de leito na 16ª porta. Engoliu em seco, agora de saliva mais pesada que anteriormente. A faringe rugiu de assombro e protesto. Edevan primeiro jogou suas aparelhagens, bagulhos para cima do teto do magnífico Hotel. Em um lapso de segundo, se deu conta que, se ele Edevan não consegue o salto perfeito para ali também chegar, perderia suas ferramentas em frustrada missão. Mas ele tinha convicção de que yes, I can.
Nosso herói(anti) jogou toda a força dos braços para apoiar a dobrinha dos dedos flexionados em sumária força de que por um instante duvidou que fosse capaz, mas logo o sub-produto de força nos braços levava seu corpo para cima e as pernas, atingindo também o outro patamar, terminaram o serviço de jogá-lo para cima, no destino final da derradeira jornada. Suava frio, porque fria também era a noite. Então foi logo de encontro ao luminoso e antes invencível letreiro.
Ed já tinha visto aquela maravilha las veguiana falhar, mas não da forma que havia planejado, plano tão besta. Observou o que fazia ideia: o letreiro era duplo, iluminava em direção a qualquer ponto cardeal. Pegou alicates, demais ferramentas e apertou aqui, afrouxou ali e desarmou as duas letras que queria, em cada inscrição. O Hotel ficou então desfalcado de sua inicial escrita e agora apontava para um erro cômico de grafia. Ao menos assim pensava o autor da peça pregada.
Espalmou seus dedos, batendo-os uns contra os outros em busca de retirar a poeira acumulada lá de cima. Os cocôs de pomba também eram uma obra do destino da natureza, parece que Edevan não era o único a querer cagar com a atividade da linha hoteleira. Perdoou as pombas por sujarem a sola de seu sapato e colocar-lhe a saúde em risco, porque vocês sabem que pomba é bicho complicado de lidar, naturalmente. Sentindo arrepios de frio em meio ao suor que lhe brotava ainda em corpo quente da intensa atividade física e psicológica - do temor de ser pego em flagrante - Edevan percebeu que seria difícil, mas complicado mesmo, fazer o caminho de volta. O salto para o quadrante da escadaria precisaria ser executado com uma manobra ostensivamente calculada e suas pernas bambeavam ali de cima. Uniam-se contra ele o cansaço, a fadiga mental, o frio da noite e o psicológico e ao menos agradeceu estar enjaquetado, pois de dia trabalhava somente de camiseta. O gorro sobre os cabelos também o protegia de alguma maneira.
Pela vertigem que a altura impressionante de 16 andares lhe causava, percebeu que perderia sim para o macaco de Araçatuba e ficaria ali por cima naquela interminável noite. Nem onze e meia no relógio e não sabia bem porque de dia saltaria melhor, se a cidade lá de baixo estaria mais visível, visibilidade esta afetada pelos disfuncionais postes. Acontece que ele tremeu mesmo as bases, lacrimejou na umidade vertente dos olhos e não conseguiu sair do lugar naquele olho de furacão. Passou a noite encostado na entradinha para a escada interna, que ele checou rapidamente, comprovou fechada e resolveu não tentar arrombar, para não ser preso. Tinha passagem policial por gramas de maconha, o azarado. Não queria voltar àquela violência desproporcional contra si. Policiais selvagens.
Se encostou ao lado da portinhola e agradeceu ao curtíssimo toldo que protegeria de qualquer eventual chuva, se tratando da sempre incerta previsão climática de seu caótico município. Mas a chuva não veio, apenas o frio acentuou-se naquela madrugada. Apesar das pernas um pouco para fora do alcance ocasional do toldo, nenhuma pomba o pioraria a situação. Mas sentia-se já em contato com as infecciosas lembranças daqueles malditos pássaros.
Acordou tremido agora era de fome e chegou à beira de sua missão de volta, mas não arriscou pular, pelas pernas ainda mais enfraquecidas. Descansaram da longa subida, mas não foram nutridas. O nosso idiota não lembrou de uma barrinha de cereais que fosse, não planejava de forma alguma passar a noite ali em cima. Mas passou e com a manhã acumulada mais uma tarde, até que abriram a portinhola da escadaria interna e o rapaz, que o viu surpreendido, até meio queimado de vastíssimo sol, se identificou como o funcionário para consertar a "porra do letreiro", com essas educadas palavras.
Edevan estava quase inconsciente e foi baixado pela escadaria interna, nunca mais pisou naquela externa, nunca mais. Mas na interna também não pisou, porque estava sendo carregado até o elevador. 16 andares abaixo da interminável noite, ele deu entrada no Pronto-Socorro, complicou-se de tanto frio apanhado em roupa de suor úmido, jejum de comer, cigarros acumulados desde os 14 anos e cocô de pomba e acabou falecendo no segundo dia de sua internação.
Um fotojornalista do Diário da Manhã havia fotografado o inusitado letreiro com o desfalque das primeiras letras de cada palavra: "OTEL ANTA", o que foi noticiado em fait-diver como fato inédito naquele município de aventuras tão comuns, entre o tráfico de drogas e a rotineira violência. Algo diferente nas páginas de também anedótico periódico.
No fim do conto cômico-trágico da trajetória do anti-herói Edevan, o jovem foi enterrado no cemitério da avenida Ildefonso Lopes, aquele lá perto do Parque do Esporte Clube Pelotas, que, diferente do Farroupilha, apesar de também vizinho de cemitério, não recebe a alcunha de Fantasma. Enfim, Edevan só saberia desses últimos acontecimentos se fantasma for, porque o cobriram o caixão com a bandeira do Internacional que ele havia abandonado. O time naquela noite de sua enfermidade, venceu por 3x0 e saltou posições na tabela. Seria uma boa lembrança de despedida após os sonolentos 0x0. Após a obra sua do OTEL ANTA, nenhuma nota no jornal pela morte do jovem que, no estado de calamidade que seu organismo se encontrava, nem foi acusado pela pegadinha de cortar as letras lá de cima. Assim se foi Edevan, um amigo de um amigo meu.
Nenhum comentário:
Postar um comentário