A bola é chutada pela imaginária linha de fundo marcada pelas touceiras ou cocorutos. Ela vai lá atrás das traves sem redes, em uma pelada de futebol também imaginário, disputado com o objetivo de apenas uma área e uma goleira. Quando a bola foge assim, geralmente opta-se pela regra do quem chuta busca. Ela pode ter acertado um dos morrinhos atrás da meta e ser ricocheteada de volta ao campo de jogo, facilitando a reposição a ser feita pelo goleiro. Ou pode ir para o meio da rua de terra batida. Ou pode ter caído em uma das poluídas valetas, necessitando ser bastante rolada na grama ou esguichada de água de uma torneira vizinha para retomar a atividade entre os jogadores.
Eram dois irmãos e um primo deles. Os três com nomes bíblicos. O primo deles de pele bem negra, um dos irmãos também de pardo para negro. O outro irmão era mais claro, mas ainda assim de branco para pardo. Os irmãos eram mais velhos, o primo um pouco mais moço. O primo Josias era franzino, magrinho, de canelas finas o menino negrinho, mas o melhor jogador de futebol entre os três citados. Aprontava muita correria e só tinha que melhorar um pouco a finalização. Mas os dribles eram desconcertantes, de um lado ao outro e a preferência pelo chute no descalço pé direito. Raramente vinha de tênis ou chuteira. Às vezes, quando assim vinha, descalçava durante o jogo e sentia maior liberdade para conduzir a bola como veio ao mundo.
Mas o descrito chute pela linha de fundo foi de um dos irmãos, o mais claro, de cabelos encaracolados. A cada finalização, geralmente errada, já que ele tinha muita dificuldade em marcar os gols, ou de qualquer fundamento, movimento dentro do lúdico jogo, ele mostrava os dentes em uma expressão de desgosto, mas parecia mais por cacoete do que realmente externar raiva. Digamos que se acostumou aos errores na hora de concluir o momento mais importante da partidinha.
Seu irmão era mais malvado e violento. Também sem demonstrar muita técnica para o jogo, era impaciente, se irritava com seus movimentos imprecisos e daqui a pouco partia para a violência. Não foi uma única vez que foi para cima do irmão chamando-o de "filho da puta". Eu achava bizarro como ele não percebia que xingava sua própria geradora.
Os jogos se desenvolviam assim. Gostava muito de jogar com o Josias, mas seus primos eram dessa forma desengonçados para atuar e nunca deixávamos que jogassem no mesmo time, geralmente por dupla, se não surgiam novos jogadores. O interessante dos campinhos de rua, em amplos terrenos baldios como era esse, com traves para futebol de 11 e espaço retangular para tal disputa, era que qualquer um que vinha passando podia se candidatar a entrar no jogo. Também não foi uma ou duas vezes que interessados mesmo em calças jeans quiseram bater um pouco na bola.
Se jogávamos em dupla, era apenas um goleiro e as duplas tentavam fazer os gols naquela trave que ficava mais próxima. Aquela que, caso errassem o alvo por muito, para longe inclusive dos morros devolvedores automáticos da bola, era preciso buscá-la no meio da rua de terra batida ou na temida valeta. A trave oposta, distante em 100 metros ao fundo do extenso terreno baldio, tinha um matagal espesso atrás da meta e não raras vezes pintavam cobras no caminho. Resultado: era melhor poupar os 100 metros de corrida até aquela trave e correr o risco de acertar a borbulhante valeta.
Josias e eu seríamos a melhor dupla entre os titulares da nossa disputa. Mas não valia a pena jogarmos juntos, só apanharíamos nas canelas. As nossas extremidades finas. Não querendo apanhar, dividíamos as duplas e procurávamos ser os artilheiros das nossas, em disputas parelhas da atividade. Eu gostava mesmo na escola era de jogar de goleiro, mas ali arriscava meus chutes e dribles nada curtos, sempre adiantando demais a bola e tentando apostar na velocidade para completar os feitos. A canhota com alguma habilidade para acertar o arco.
Era certo que nenhum de nós chegaria à profissionalização no futebol. Os irmãos muito distantes, eu com alguma esperança, mas anos depois percebi que me voltaria muito melhor ao estudo e às atividades de imprensa, ou ao menos escrita. Josias parecia a grande esperança. Temia pelo fato dele ser muito pequeno e nada instruído para jogos sérios. Era um verdadeiro peladeiro. Ciscador, diriam também na linguagem apropriada. Malabarista da bola, que domava tanto pelo chão como em jogadas altinhas. Não raramente ensaiava o uso da bicicleta como recurso. Precisava reagir e muito em massa muscular. Anos depois o encontrei assim, bem maior, mas já dotado da condição de ser pai ao final da adolescência. Parece que arriscou meses no exército e depois não mais o vi.
O sorridente Josias trocou o nosso bairro pela ponta oposta da zona urbana da cidade, o bairro Fragata. Os primos ainda estiveram por ali por muito tempo enquanto convivi no espaço entre a avenida onde eu morava e o campo onde disputávamos esses finais de tarde inesquecíveis. Com amplo apoio familiar, segui linearmente minha vida dedicada aos estudos até os primeiros empregos já na casa dos 20 anos. Os primos em questão não recordo se eram mais velhos do que eu, apenas que eram mais velhos que o Josias, que era o mais novo entre nós todos.
Eis que os primos seguiram por ali na quadra. Eram da casa mais improvisada. As cercas tortas com madeiras de vários tipos, o pátio em materiais encontrados pelas ruas, as galinhas por ciscarem para o lado oposto da cerca, em direção ao meio da rua, em busca de suas incertas refeições. A vida dos primos não seguiu linearmente o caminho de estudos, como desde jovens não se desenhava assim. Omitiam em qual série estudavam e possivelmente deixavam de frequentar as aulas por vários dias. Às vezes eu chegava para aproveitar os filetes de sol do final da tarde e eles já estavam a postos para bater uma bola. Ou sentados no banco de madeira à frente de sua casa ou já correndo pelo campo em alguma atividade como arremessarem pedras um contra ou outro, ou, na melhor das hipóteses, improvisando uma pipa. Acho que as chamavam de papagaios. Nunca tive muita habilidade manual para constituí-las, mas isso eles conseguiam realizar com boa destreza. Pela pouca intimidade com a bola, muitas vezes se dedicavam mais tempo a aproveitar o vento com seu brinquedo em madeiras e tecido.
Os anos foram passando e eu já não jogava mais bola com eles. Quando muito corria pelas quadras da minha escola. Procurava outros hobbies como ir ao cinema ou tentar entender os jogos virtuais que muitos amigos aderiam nas tecnologias vigentes. O campo também ia piorando gradativamente seu já não antes belo aspecto. A falta de cuidados no corte da grama acarretava uma prática quase impossível. Era preciso força de vontade que já não me interessava para jogar bola naquela grama até a altura das canelas. Diversas touceiras, que poderiam gravemente torcer um pé ou mais amenamente estragar dribles, passes e chutes a gol, desanimavam os amadores de plantão.
Josias era meu melhor amigo entre eles. Tinha um caráter positivo, o sorriso abundante, sempre estampado em seu rosto. Uma das vezes que mais ri foi quando apareceu de cabelo completamente raspado. Disse que os primos, ou tio, não recordo, mas eles haviam raspado seu cabelo enquanto dormia. Me questionava como isso era possível. Como ele não havia acordado? Estava careca no dia seguinte e sorridente, sem se importar com a mudança radical em seu visual. Seguia o embalo, bastava a bola rolar e, como um brinquedo de pilhas novas, corria para lá da capital do Iraque, Bagdá. Elétrico, sempre em alta voltagem, independente dos problemas que poderiam se apresentar familiarmente e que futuramente o também poderiam atormentar.
Havia um primo de Josias que residia na curiosa Porto Alegre, que eu tão pouco conhecia. Assistia a todos os jogos do Grêmio na torcida e do Internacional na chamada secação. O Olímpico de aspecto Monumental, redondo como a bola que fazíamos correr pelas touceiras do nosso terrenão baldio. O Beira-Rio que mentia e eu acreditava que eles teriam a maior torcida do Rio Grande. Fato que, conforme avancei em idade, foi redundantemente desmentido, sempre com o Grêmio acima no percentual das pesquisas. O Grêmio, da maior torcida do Rio Grande do Sul. Eu entre eles, mesmo muito à distância. Entre os primos de Josias, um me parece que também era gremista e o outro não se definia. A camisa que dessem a ele, seja de qual time fosse, serviria e ele vestiria orgulhoso para tentar jogar o seu futebol. Ou mesmo empinar pipas ou projetar pedras contra irmão como alvo.
O primo porto-alegrense de Josias, entretanto, era colorado. Mas jogava pela base do São José, clube da zona norte da capital gaúcha. Um time ainda distante da sua projeção fixamente nacional, hoje em território da Série C, entre os 60 maiores clubes do país. Com a grama sintética e a mudança de nome do chamado Passo d'Areia para estádio Francisco Novelletto (com dois L e dois T, imprensa). Novelletto, presidente da Federação Gaúcha nos anos 2000 até o começo do mandato de Luciano Hocsman em 2020, também havia presidido o clube São José nos anos 1990. Alçou uma boa projeção à atual terceira força da capital. O Cruzeiro, embalado campeão gaúcho dos primórdios, residente de nova arena própria em Cachoeirinha, é conhecido como o clube do interior que mais vezes derrotou Grêmio e Internacional. Mas, distante da elite gaúcha, pode perder o posto em alguns anos para o Juventude. Projeções...
Pela terceira vez tento iniciar um parágrafo sobre o primo de Josias sem me distrair com curiosidades do futebol gaúcho. Ok, o primo de Josias. Se chamava Rodrigo. Era bem mais velho e tinha um físico adequado para tentar a profissionalização no futebol. Muita noção de jogo, mais experiente e bem treinado do que nós. Eu tentava rivalizar, incomodá-lo como o melhor das partidas, mas ele, pela idade, parece que levava ligeira vantagem. Era um bom adversário e sempre que ele vinha nos verões a Pelotas, era com felicitação que o recebia para nossos amistosos embates. Sendo mais velho, também nos introduzia em assuntos mais apimentados que nosso bate-bola. Mulheres já estavam na pauta daquele jovem que rumava a seus 15 anos. Josias era o que menos entendia. Rodrigo ria dele e disse que um dia ele saberia sobre como funcionava esse tipo de relacionamento. E soube mesmo, Rodrigo estava certo, com a comprovação através do fato de Josias ter virado pai antes dos 18.
Mas naqueles dias bem mais demorados e menos estressantes do que os atuais, o que nos importava era bater bola enquanto a visibilidade era possível e as nuvens de mosquitos não nos corriam do campo. Futuramente, adentrei ao campo antes das empreiteiras iniciarem os novos conjuntos habitacionais, prédios residenciais, apenas para fotografar o sol, que se punha ao fundo dos apartamentos do condomínio vizinho ao campo, um conjunto de prédios mais antigos, que recebiam asfalto para entrada de suas largas garagens. Eram quase uma mini-cidade. Possivelmente mais de mil pessoas moravam nos prédios dali. Mas, pelas condições de vida, estavam muito mais envoltos para jogar futebol de salão no centro da cidade do que correrem de graça e sem horário marcado no nosso terrenão baldio. Azar o deles.
Quando entrei em nosso histórico campo por uma das últimas vezes, portava a câmera comigo e, na volta do centro da cidade, fui para a grande área onde tantos gols marcamos e pude fotografar o astro maior alaranjado por dentro da trave. Uma das cenas mais bucólicas que me posso recordar. Aquela trave extremamente fina, mais difícil de acertá-la do que os canos grossos dos campos oficiais de jogos, mas que mesmo assim muito fizemos balançar a moldura tantas vezes. Particularmente eu gostava muito de acertar a trave, sentimento muito anterior aos programas de apostas de quem conseguiria acertar o travessão valendo dinheiro na televisão ou prestígio entre os postulantes ao título Gaúcho. Os times de Pelotas inclusive iam bem nessa competição estadual.
Cada vez que adentrei posteriormente ao campo de nossas tardes verdejantes, sentia que poderia ser a última vez. Agora, com o terreno começando a ser calcado em aterro para fundamentar a base dos futuros prédios, tenho certeza que o prazo está esgotado. Parece que o asfalto finalmente vai sedimentar a rua que era de terra batida. Onde corríamos atrás da bola antes que algum carro ou o ônibus acertasse a redonda, podendo estragar o couro de fora ou a câmara de ar de dentro. Ou antes que algum espertinho pudesse querer roubar, o que nunca ocorreu (para a sorte do espertinho). A maioria dos transeuntes, a pé ou de bicicleta, chutavam ou arremessavam a bola com as mãos para retornarmos a peleia. Reforçando, alguns curiosos até se convidavam para trocar uns chutes antes de irem para casa, provavelmente, pela direção que tomavam, rumo ao espaço das ruas em formatos de flores da Bom Jesus, no meio do Areal. Interessante que, desconhecedor do próprio bairro, só percebi que as ruas da Bonjo eram em formatos de pétalas através do Google Maps, por observação feita pelo meu amigo carioca. Que viagem!
Enfim, as máquinas do progresso então impulsionam o aterro para a construção do novo condomínio. A área do Areal vai ficar cercada de prédios, prédios que inexistiam, fora o condomínio vizinho do nosso antigo campo. E ali eram prédios baixos, no máximo com quadro andares. Estes novos devem ser maiores. Ou até não serão maiores, já que há muito espaço nos metros quadrados de nosso anterior tapete de touceiras e cocorutos. Podem construir vários não muito altos, ao invés de poucos bastante elevados. Independentemente de como serão exatamente, serão prédios que taparão parte de minha história e da história antes mais sadia daqueles garotos do bairro.
Serão prédios que trarão o chamado progresso para aquela rua de terra batida, cujo ônibus Bom Jesus passava e levantava muito mais poeira do que agradaria a Ivete Sangalo em sua música. Sacodia realmente o pó da terra batida, levando as donas de casa à paranoia pelas roupas nos varais. Jogando camadas e mais camadas de sedimento por cima das pinturas dos corajosos vizinhos.
Até havia me esquecido dos dias de chuva. O campo ficava inutilizável, mas foram numerosas vezes que corremos com a bola para jogar no gramado encharcado pós-chuva, com o barro na rua em frente, com o acesso cheio de poças, que procurávamos desviar por entre os lixos mal descartados. O lixo que sempre foi um capítulo à parte. Se encontravam roupas, calçados, descartes eletrônicos e todos os tipos de resíduos. Era sempre uma surpresa correr os metros que separavam aquele lamentável lixão do campo efetivamente para o futebol de 11.
Tudo isso é passado. Rodrigo, o primo porto-alegrense de Josias, nunca mais vi e agora sei um pouco mais sobre aquela misteriosa Porto Alegre. Ele que desde os 14 para 15 anos andava bem arrumado, até com alguma das marras para jogar bola. Cuidava do cabelo e das primeiras aparições de barba. Hoje deve estar próximo dos 30 anos em alguma outra profissão. Ao menos no futebol nunca ouvi seu nome pelo interior do estado. Josias entre o exército, alguma nova profissão e tendo que lidar com seu filho que nasceu. Espero que cuide dele de alguma forma. E que mantenha o sorriso estampado no rosto.
Os primos... bem, os primos de Josias continuam pelo bairro, mas fazendo cada vez menos jus aos nomes bíblicos que lhes puseram. Perceberam que futebol não era o forte, soltar pipa era apenas diversão, estudo não levavam adiante. Trabalho em mercearia ou pegar em obra, muita complicação de acordar cedo e seguir regras. Foram pelo caminho mais curto e vocês já sabem qual é.
"Há muitas situações tentadoras para entrar no mundo das drogas, mas há ainda mais situações assustadoras que impedem de deixá-lo."
*Reflexões acerca da infância após assistir ao filme norte-americano Moonlight*
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