07/07/2020

A Senhora da Van e a Pandemia

Acabo de assistir ao filme A Senhora da Van. É um inglês, de 2015, se passa em Londres. Um escritor solitário adquire uma casa, naquele melhor estilo inglês, prédios similares, um ligado ao outro em ruas arborizadas com asfalto para os carros ingleses. Acontece que havia uma senhora moradora de uma van, como uma andarilha. Ela estacionava o veículo pelas proximidades no bairro e se instalava defronte às casas; de tempos em tempos mudava de "endereço", mas sempre morando dentro da van. Uma personagem de mão cheia para o escritor atiçar a sua criatividade, mas, mais do que isso, revelou-lhe adaptações para o seu lado mais humano. Ele que também estava com a mãe em condição idosa e cada vez mais deficitária quanto à saúde. É um filme recomendável, história para reflexões e consentimentos. E é o que aqui tentamos traçar a partir de agora.

Como mencionado, a adaptação cinematográfica da história é de 2015. No presente 2020, a própria Inglaterra foi um dos países mundialmente mais afetados pelo novo coronavírus. São muitos idosos na velha bretanha. Condição essa que talvez tenha alavancado a identificação dos britânicos com a história da senhora Mary, ou Margaret.

Para o Brasil, é interessante analisar o que temos passado com a pandemia global de covid-19. Os maus exemplos parecem proliferados, como os focos virais. Os brasileiros jamais deram exemplo de bons cuidados com seus cidadãos de terceira idade. São dificuldades históricas. Além do mais, cresce nos últimos anos o número de idosos, nos números totais e também percentuais, como é possível observar nos gráficos de pirâmides etárias. É chamada de pirâmide porque as tendências sociais sempre foram apresentar bases largas na medição de faixas etárias. O que isso significa? Significa que há sempre mais jovens do que adultos e consequentemente idosos. Mas isso tem mudado pela Europa, pelo Canadá, pelos Estados Unidos e em outros países.

A tendência mundial é o aumento percentual no número de idosos. Ou seja, a pirâmide perde sua característica piramidal e passa para assemelhar-se a outros polígonos. Talvez um retângulo em previsões mais atuais. Futuramente ela pode até inverter-se. No Brasil, a maioria da população ainda é jovem, mas isso também tem se mostrado um problema na pandemia do coronavírus.

Os jovens brasileiros estão desrespeitando muitas regras. São festas clandestinas, aglomerações, saídas desnecessárias para verem amigos, visitar familiares, compromissos de namoro e até de pessoas recém conhecidas. O péssimo exemplo reflete na alta rotatividade do vírus no Brasil. Ao escrever este texto, já somam-se mais de 66 mil mortes no país em decorrência da covid-19. Se somarmos os casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave, então...

Essa alta taxa de desrespeito pela quarentena, pelo isolamento social, pelo necessário mas pouco infundido lockdownnn, mostra que os brasileiros estão poucos se importando com os idosos, principais afetados pelo novo coronavírus. São os que mais apresentam sintomas, são os que necessitam de leitos, de entubação, de respiradores, de atendimentos médicos urgentes e, nisso tudo, também se tornam as principais vítimas de fatal doença.

Os jovens, por outro lado, em raros casos estão perdendo a vida para a covid-19, mas são os principais vetores. Eles adquirem o vírus e repassam. Repassam até chegar em pessoas gravemente sintomáticas, que lotam os leitos e estão, não raramente nesse período difuso, terminando nos cemitérios em cerimônias pequenas, porque nem a esses momentos de luto o vírus parece querer poupar ou se afeiçoar a suas trágicas vítimas.

É um assunto gravíssimo. Os populares, habituais maus tratos e desrespeitos a idosos adquirem novas conotações com a pandemia global. Como os anciãos e anciãs são as principais vítimas, países que tomam menos cuidados, com maior consequentemente disseminação e mortes, demonstram também o quão relaxados, desprovidos de caráter se mostram seus cidadãos. Profundamente lamentável.

Perde-se na aquiescência dos números o compromisso com as histórias, com o lado humano de quem está nos deixando. É apenas mais uma idosa. São apenas mais dois idosos. Uma mulher de 78 anos, um homem de 83 e outro de 87. Pouco nos importa. Pouco nos choca. Mas são pais e mães, avôs e avós. Eram profissionais, atendentes de padaria, freiras, musicistas, biólogas, escritores, políticos, assistentes sociais, esportistas... uma infinidade de histórias que chocam-se com o luto a rodapé. Números e estatísticas.

Uma emocionante capa do Jornal O Globo, publicada faz dias, foi pelo dia 10 ou 11 de maio. O Brasil ainda estava distante do pico da doença, dos maiores gráficos de contágios e mortes. Mesmo assim, através dessa maneira, prestava-se uma homenagem aos que se foram. Mas a doença maior segue traiçoeira, imparável, insaciável. Já engoliu mais tantas e tantas vidas pelo país. E não há novos editoriais que deem conta. O governo mostra-se genocida pelas medidas que adota, pelas medidas que ignora, pelas mortes que em consequência provoca. Sem ministros da saúde neste crucial momento. Uma calamidade jamais vista na história republicana brasileira.

Funerais já são habitualmente tristes, cerceiam a alma dos que ficam entorno do ente querido que partiu. Nublam os dias, alimentam o farfalhar nostálgico dos ventos contra as folhas das árvores e as páginas da vida. Livros que se fecham para serem abertos apenas por quem prestou atenção nas passageiras histórias, para serem recontadas, reabsorvidas por futuras gerações. E que legado estamos deixando? Cuidamos dos nossos? Ouvimos os nossos? Sentimos os nossos? Fizemos por eles? Essas perguntas podem atormentá-lo ao impassível sereno noturno. Deita-se contigo e ocupa maior parte do travesseiro do que sua cabeça. Pense nisso.

Ao passo de derradeira luta contra a covid-19 e contra outras doenças e contra a própria crueldade e debilidade humana, quantas senhoras da van estamos perdendo. Ou julgando. Ou, todavia, de qualquer forma, estamos perdendo. A cada dia, mesmo vivos, estamos perdendo. Derrotas em looping. Vamos virar um pouco o jogo?
(Filme: A Senhora da Van / Divulgação)

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