Cuarón mexe muito com a questão dos nascimentos. Em Filhos da Esperança já havia experimentado a temática com força, em um futuro apocalíptico em que os seres humanos não conseguiam mais ser férteis. A esperança depositada em uma imigrante na Inglaterra. A necessidade das crianças para o futuro geracional da espécie humana.
Tenho percebido em tempos pandêmicos como estamos em 2020 que as crianças não são somente a esperança por elas próprias, vida renovada, uma vida inteira pela frente daquelas que nascem e vão escrevendo suas páginas por ora em branco. As crianças servem para modificar a nós mesmos, jovens adultos, velhos adultos, idosos. Nos revivem tempos remotos há muito esquecidos. Nos fertilizam o elixir da esperança de novos tempos. Nos dão motivos para novas lutas, por elas, mais do que por nós, a depender dos casos. Sim, é assim que funciona.
Em 2020, ao passo que as mortes no Brasil são milhares e a pandemia do novo coronavírus leva brasileiros e brasileiras diariamente, em tempos de pouco espaço ao luto e à despedida, as crianças têm vindo repovoar ao menos a minha história. Explico. Minha amiga de jornalismo, a amiga que morava com ela, ambas mães no mesmo ano. Meu primo em Santa Catarina, um de meus preferidos em contatos, este tornando-se pai. Sinto-me renovado ao ver as fotos de Lorena, minha nova prima catarinense. Meu professor e apoiador na carreira do rádio também será pai mais uma vez. Ele me conta isso muito contente. Fico contente por ele e falo sobre esse necessário processo de renovação. Ele assimila e concorda. Estamos felicitados a respeito.
O mundo é muito ruim, é péssimo, é danoso, é hostil. Alfonso Cuarón demonstra isso a cada filme, nos dramas pessoais de seus personagens, seja no espaço sideral com Sandra Bullock tendo que retornar à Terra, ou numa Terra apocalíptica e desmembrada em guerra em Filhos da Esperança. Ou nos dramas familiares dessa última versão que me causa erupção, no filme mexicano Roma, justamente vencedor de prêmios Oscar.
Ao passo que o mundo é ruim e prega peças e persegue a imigrantes, e persegue aos pobres, e persegue às mulheres, Cuarón elucida tudo isso em suas filmagens, deixa transparente para quem quer e necessita ver. Mas deposita esperanças jubilares nas crianças, mostra novas possibilidades a partir delas. Não nos permite a completa ilusão, porque coloca nelas marcas presentes nos adultos. Talvez os garotos com armas de brinquedo no último filme mexicano. Imitação de maus hábitos adultos. Os adultos atirando no interior, na colônia rural. As crianças com pistolas de brinquedo nas cidades.
O contraste das cenas entre o que é permitido aos homens e restrito às mulheres, o que é de permissão aos ricos e proibição aos pobres. Cuarón oscila essas imagens entre cenas mais sutis ou mais grotescas. A ida para comprar um berço e os protestos estudantis duramente reprimidos pela polícia, inclusive com mortes, com muitos feridos. O quase anonimato da paciente pobre que tenta um parto, sem plano de saúde. A forma como as empregadas são tratadas, isso observado em outros sucessos de bilheteria, como o brasileiro Que Horas Ela Volta? e o sul-coreano Parasita, duas outras grandíssimas produções vencedoras em festivais.
Cuarón aposta no orgânico das cenas. Paisagens bem definidas, cidades retratadas com o máximo de verossimilhança. Trânsito intenso de pessoas, demonstrando sempre que o mundo não pára à nossa volta, não cessa diante o nosso drama, o nosso luto. É assim para conceber uma nova criança, uma nova esperança em hospitais cheios, com atendimentos limitados, feridos, acidentados, acompanhantes e pacientes em suas lutas particulares na saúde pública. O marido que sai de casa e não volta, enquanto uma banda marcial corta a rua com seus instrumentos barulhentos. O mundo ao nosso entorno não enxerga os pequenos enxertos de dramas em cada casa, menores ou maiores.
Com posicionamentos escatológicos, o diretor mexicano pontua as cenas do cachorro da família, literalmente cagando e andando para o que acontece em volta. Não contente, Cuarón ainda posiciona diversos cachorros de rua durante os outros cenários. Contraste entre o cachorro com casa e os sem? Pode ser também.
O contraste entre homens e mulheres é um dos mais fáceis de enxergar, pela liberdade com que desfecham suas histórias, abandonando filhos, com o uso das ameaças ou da violência ou sem. As tarefas caseiras, o cuidado das crianças sobra para o colo feminino. Duras realidades em tantas famílias, estruturadas ou não, pelo México, pelo Brasil, pelo restante da América Latina, na outra América ou em outros continentes. Histórias que se repetem.
É super recomendado que se assista ao filme para observar esses e mais detalhes, mas desde já salienta-se que Cuarón cumpre o que se espera de suas grandes obras, quando aresta e fecha os pontos, trabalha o dinamismo social nesses contrastes todos: homens x mulheres; ricos x pobres; cultura opressora x cultura oprimida, levando em consideração a origem indígena das empregadas, em contraste com a família dos patrões.
Também está no filme o contraste da cena no povoado para fora. Os ricos consomem o Ano Novo com músicas estrangeiras, tradições vindas de fora, a presença do idioma inglês. Os pobres, os empregados estão no subterrâneo, no limitado espaço com as músicas nativas mexicanas. O ambiente apertado e tumultuado que que faz com que Cleo derrube a sua bebida na hora de um brinde, ao tomar um encontrão. Quantos cutucões o filme impulsiona! quando seria mais sutil ser acometido por um coice.
Por fim, no que pensei durante a exibição do filme, não posso deixar de salientar a questão da mulher com a gestação. O processo inteiro de gestação, não restritamente ao parto ou ao pós-parto, o cuidado com as crianças. Agora escrevendo percebo como esse "início, meio e fim" se prolonga na vida de uma mãe. O homem insere a semente para o filho e larga fora, abandona sua família. A mulher passa os nove meses com o crescimento do feto até a hora do parto do bebê. Depois disso, como salientado no filme, também está sozinha para cuidar daquele novo indivíduo, sem a recomendada divisão das responsabilidades. Aquele pequeno ser necessita constante cuidado, precisa se alimentar do leite, precisa ser acalmado para dormir, precisa trocar as fraldas, precisa estar o tempo inteiro vigiado para não se afogar no mar da vida.
Penso em tudo que minha mãe passou para me conceber. Essa história veio à tona há pouco tempo e não me preocupo em dividi-la. Meus pais tiveram minha irmã já tarde, passados os 30 anos de cada um. A médica, ou os médicos, não sei, disse para minha mãe que ela não teria mais filhos. Foram pelo menos cinco anos de sexo entre eles sem resultado fértil. Fernanda seria filha única, mas então vim ao mundo. Foi uma surpresa para todos, mas minha irmã ganhou um irmão. Penso na gestação que já seria de risco pela idade avançada de minha mãe, o chamado parto de risco, mas incrivelmente deu tudo certo, dentro do possível. Por conta dessa "espera", dessa "demora", hoje aos meus 20 e poucos anos, tenho meus pais como grupo de risco do novo coronavírus, pois já ultrapassaram os 60.
Vale lembrar que minha mãe havia perdido o primeiro filho durante sua primeira gestação. Isso quando era mais jovem. Eram péssimos indícios, mas as outras duas gravidezes acabaram gerando bebês em partos saudáveis, para mãe e crianças. E aqui estou.
Relembrar de onde viemos de certa forma me encoraja a tentar um pouco mais nessa sofrida vida que tantas vezes penso abandonar. Ser um pouco mais saudável, por ela que saudável me carregou contra todos os riscos, por todos esses meses, por todos esses anos, antes de eu ser concebido e depois. São os nove meses e outros tantos anos. É relembrar para eu ser mais saudável e afastar meus pensamentos das drogas e de outras mortes. Sou grato e me restrinjo e me protejo mais por ela do que por qualquer outro ser, inclusive eu próprio.
Relembrar de onde viemos de certa forma me encoraja a tentar um pouco mais nessa sofrida vida que tantas vezes penso abandonar. Ser um pouco mais saudável, por ela que saudável me carregou contra todos os riscos, por todos esses meses, por todos esses anos, antes de eu ser concebido e depois. São os nove meses e outros tantos anos. É relembrar para eu ser mais saudável e afastar meus pensamentos das drogas e de outras mortes. Sou grato e me restrinjo e me protejo mais por ela do que por qualquer outro ser, inclusive eu próprio.
A cena final do filme Roma talvez seja a mais famosa da película. A família unida na praia, após um entre tantos salvamentos. A gratidão pelo que se tem, a luta com as ferramentas ao alcance. As diferentes concepções possíveis de família. A importância da empregada Cleo para cada uma daquelas crianças. A importância de cada uma daquelas crianças para a sofrida empregada Cleo. Coisas que mudam ou não mudam naquela família de patroa e empregada. Feminismo não é feminismo sem luta de classes, não é mesmo? Ouço muito por aí e concordo. Luta de classes.
Dessa forma, encerro com reverências novamente ao mexicano Alfonso Cuarón, ícone de produções sentimentais, de entendimento social, de transposição da realidade para seus filmes. Provocador de reflexões e retratador de angústias. E que mais seria a vida, e que mais seria o cinema sem esses elementos?
Gracias a mi mamá
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Cena final do filme 'Roma', de Alfonso Cuarón (Divulgação) |
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