25/06/2020

Não adianta mesmo ser livre

Acabo de ler On The Road - Viajante Solidário, do escritor descendente de francês, nascido nos Estados Unidos, Jack Kerouac. O sobrenome dele havia me confundido e confunde a muita gente. Não se sabe se pronunciamos de um modo inglês a combinar com o nome Jack, ou se ele era de fato um franco-estadunidense, ou até a presença das letras em semelhança a povos indígenas dos Estados Unidos. Somente para o final do livro, após debochar de algumas pronúncias que lhe conferiam, ele, ao desembarcar para Europa, demonstra sua ansiedade por conhecer a França de seus antepassados. Então devemos computar uma pronunciação francesa. Mas era nada disso o que eu tinha para comentar.

O espírito aventureiro da geração beatnik havia me despertado uma diferença do modus vivendi (pra encher a boca e dizer isso, que nada mais é do que o modo de vida) possível entre um homem e uma mulher na época. E mesmo entre um homem e uma mulher para maiores atualidades, iniciada segunda década do século 21. As viagens de trem, de navio, a espera das noites pelas manhãs, os hotéis baratos e suspeitos, a vida à beira e sobre os trilhos. Quanto tempo duraria uma mulher em semelhante atividade? Não por questionar de modo algum sua resistência, mesmo levando em consideração os episódios sobre as montanhas do noroeste dos Estados Unidos, quase Canadá. Não questionamos aqui capacidades fisiológicas, mas as atividades sociais, o modo como a mulher é vista e tratada na sociedade. Após tantos tipos de viagem, seria permitido que desembarcasse em segurança, sem ser perseguida, sem ser 300% mais importunada, sem correr os maiores riscos de violência dos mais diversos tipos? São algumas questões. Atrela-se que não são restrições à época distante da geração beat nos Estados Unidos, mas temas de ainda grande relevância. É difícil pensar como ocorreria a sobrevivência nessas condições. Repetindo que levando em conta muito os aspectos sociais que cerceiam as desventuras.

A diferença também poderia ser tratada nas relações entre as oportunidades, vistas e tratamentos entre um homem branco, no caso Jack Kerouac, e algum homem negro de mesmas tomadas de decisão. Oportunidades empregatícias, abordagens policiais, consultas de passaportes, etc. Existe uma censura social a respeito de tudo isso. A pessoa, com semelhantes ideias e disposições a vaguear dessa maneira poderia ser censurada durante suas aventuras. Ou, como é mais comum se pensarmos, a própria pessoa, mulher ou homem negro, no caso, poderia se auto-censurar. Não se daria ao estado de perambular, viajantes solitários, dessa maneira incerta e de prerrogativas inconsequentes.

São alguns pensamentos. Penso também nas questões atuais, em mundo pandêmico, censurado e advertido pelos riscos, pelos perigos mortais da covid-19, a doença propagada pelo novo coronavírus. Os indicadores econômicos barranca abajo, mas sobretudo a vida de cada família, de cada pessoa afetada, na perda não de lucros, mas sim de condições básicas de alimentação, de teto para morar. Como houve o caso em Pelotas de uma vila inteira de moradores despejados por ação de reintegração de posse. Leva-se em conta que trata-se de um terreno em absoluto desuso pelos requerentes ditos proprietários, sem alguma urgência que justifica-se a ordem de imediato despejo, onde não houve, por mais do que um mísero turno matinal, conversa entre os concidadãos e as forças policiais responsáveis pela ação do despejo. Pessoas que, em meio a uma pandemia selvagem, que atinge, como há de se esperar, principalmente aos pobres. Pessoas que perdem suas moradias e de hora para outra, com seus poucos pertences, são obrigadas a migrar para residências apertadas de parentes ou procurar ajudas circunstanciais do poder público. E onde está aí o risco do contágio pelo novo vírus? Parece irrelevante para os requerentes proprietários do terreno, para a juíza que autoriza a reintegração de posse e para a prefeitura que permite, que autoriza, que é omissa na ação policial devastadora.

Os indicadores econômicos baixam pelo país, famílias desalojadas, questão levantada rapidamente como um ataque de voleibol. O saneamento básico no Brasil. Não se falava nisso, mas tão logo se falou e o atacante já cravou uma cortada para o chão da quadra adversária. E o time que sofre o ponto é o do povo brasileiro. A privatização não escancaradamente apontada nos pontos de um projeto aprovado no Senado, votada por representantes que popularmente não representam. Pouquíssimos debates, escassas aparições midiáticas a respeito e selada a oportunidade de empresas estrangeiras meterem suas mãos sujas de sangue na água brasileira, em diferentes estados, conforme lançarem-se sobre as burocracias de concessões. A população nada ou quase nada sabe a respeito disso. A militância de A ou B e de C não se entende a respeito. Comemoraram o posicionamento contrário, rogam pragas a quem concordou com abjeta e rasteira ideia. A população mais pobre, nisso tudo, novamente a mercê. Os aprovadores defendem os novos investimentos que virão, as novas oportunidades de ampliação das redes de abastecimento de água e saneamento. A todos, fica o risco, a preocupação, a dúvida do custo das embargantes obras. 

"Tudo bem, garota, não adianta mesmo ser livre. Se tanta gente vive sem ter como comer."

Entre sonhos beatniks de liberdade em um mundo em que muitos sonham ao menos mínimo para alimentação. A defensoria aos oprimidos sob rótulos pejorativos de comunistas. Assim chamam. Preferem talvez os vagabundos que perambulam pelas cidades em busca do seu miserável sustento do que um governo estatizado e que realmente se preocupe com as pessoas mais vulnerabilizadas, o que se costuma - midiaticamente e governamentalmente - se lançar para baixo dos tapetes da república. Válido pensar que a vida da mulher para sobreviver nas ruas é imensamente mais complicada do que a do homem que pode caminhar pela beira dos trilhos em uma visão mais ameaçadora do que ameaçada. Válido pensar naqueles que tornaram-se inválidos para serviços braçais ou mesmo intelectuais com as sequelas de guerras, de conflitos ou mesmo do andar errante pelas ruas. É preciso que se garanta o básico, constitucionalmente.

Como pensar em sonhos libertados enquanto se retiram as casas das pessoas, enquanto o acesso à água e ao saneamento, itens básicos e indispensáveis para uma rotina mínima, ainda não são garantidos? Parei por essa linha de raciocínios entre o cérebro On The Road na companhia beat de Jack Kerouac - o descendente e admirador de franceses - e a impossibilidade brasileira de desfrutar do conforto minimizado que deveria ser preocupação e garantia federalizadas. O que dizer do auxílio emergencial para os desempregados e pessoas em vulnerabilidade, "benefício" assim chamado com disponibilidade por internet, por aplicativo? Quem mais precisa realmente tem como sacar essa proposta? Resoluções distantes. Fiquei em dúvida o que seria o B no meio do nome de Vanessa, mas não quero perturbá-la em perguntar.

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