20/06/2020

encosto de renda

Organizava a papelada sobre a mesa. Lápis, régua, borracha para eventuais equívocos. Mas ela era bastante rápida e precisa. Havia quase 20 anos que emitia impostos de renda. De bate-pronto, contabilizava os dela e o do marido. Familiares também contavam com ela, afinal, era a pessoa com a melhor formação na área dos tributos bancários entre as de seu sobrenome.

Calculava recebimentos, bem declarados, alíquotas finais e foi surpreendida naquela tarde de sábado por uma presença. Primeiro mirou para dentro do copo d'água posicionado à sua esquerda, a uma distância razoavelmente confiável dos importantes papéis. Com círculos efêmeros que tão velozmente se formavam já sumiam, ela percebeu que algo estava causando as vibrações. Origem desconhecida.

- Quem está aí?

Como em qualquer filme do gênero, não obteve repentina resposta. De testa franzida percorreu rapidamente o ambiente como uma câmera em movimento travelling, de um lado ao outro da sala. Sem conclusões, prosseguiu de onde havia parado. Era o imposto de sua prima. Tinha aproveitado a saída dos familiares, rumo ao sítio para catar vergamotas ou alguma fruta que o valha. O silêncio era uma dádiva para elaborar os documentos. Mas agora ela estava preocupada e a cabeça quase se desconectava da matemática certeira.

Sentiu arrepios de frio lhe percorrerem o corpo. A gata Jandira passou debaixo da mesa e correu para fora. - Só pode estar de brincadeira - falou muito mais para si do que para fora. Voltou a notar os círculos reproduzirem-se no copo d'água. Percebeu que, ao frio do meio do ano no hemisfério sul, não estava com sede e livrou-se do copo na pia da cozinha, contígua ao espaço da sala. Pronto, poderia voltar finalmente ao trabalho em paz. Para certificar-se de que estaria tudo bem, terminou de abotoar a casaca que vestia, protegendo melhor o peito e o pescoço com o alinhamento das estruturas em suas respectivas casas.

Alinhou-se ela no retorno à sua cadeira, coluna levemente torcida, mas, após tantos anos de repetitiva atividade, ela não se importava. Compensaria nas aulas online de yoga depois. Ouviu o acessório de lareira, que estava bem calçado, despejar-se ao chão. Não era possível. - Quem está aí?? - Repetiu a pergunta anterior.

Atravessada por outro espasmo de frio, em seguida deu-se a revesgueio do olhar com uma sombra. Terminou de derrubar sua própria temperatura com a aparição diagonalmente postada a ela. Quase não conseguia pronunciar a pergunta seguinte, por ordem natural, que só poderia ser: - Quem é você?

- Eu? - Disse a sombra tornando-se semblante e finalmente ganhando formas cada vez mais humanas, com distinções de olhos, nariz e boca, com a qual completou - Eu sou o encosto de renda.
- Encosto de renda?
- Sim, o espírito que fiscaliza e cobra os impostores.
- Impostores?
- Pare de repetir o que eu falo, madame. Seguinte, acompanho seu trabalho há muitas temporadas. Não pense que não. Nem repense agora, foco em mim, foco em mim. Você não caiu nas malhas nem grossas nem finas, mas não pode escapar da justiça divina do encosto de renda.
- E a que me deve a visita após todos esses anos, senhor encosto?
- Me chama de Djalma.
- Senhor Djalma.
- Apenas Djalma. Eu vim para cobrar por seus negócios familiares. Tretas em vendas e revendas de carro, más remunerações e tratamentos aos funcionários do sítio, percebe?
- ...
- Você sabe do que estou falando. Fora as vezes em que você trabalhava no banco e destinava destinos...
- Destinava destin...
- Não me interrompa! Interferia juntamente ao gerente nas transações possíveis àqueles pobres camponeses que buscavam linhas de crédito suficientes. Lembra daquele inverno da estiagem? Dos períodos de seca? Das perdas nas lavouras? Mas você ainda não tinha aquele sítio, não é? Foi herdado. Foi corretamente abalizado? Será que foi? Cada arrendamento de terra?
- Não sei o que dizer, senh... Djalma. Djalma... Não sei o que posso fazer por você agora.
- E o carro, o que seu marido e as crianças saíram para o sítio ontem de noite? Violar a quilometragem do anterior, avisar que a regulagem dos freios estava em perfeito estado. Quase causam a morte de outra família. Nota a gravidade disso, Eugênia?
- Sabe meu nome. - Mais afirmando do que perguntando.
- Sei tudo sobre você. E seus impostos. E suas declarações e omissões e subnotificações. Por tabela, conheço as situações financeiras de seus familiares que lhe pedem as emissões também. Mas sei que trabalha fielmente para eles. Não deixa passar um fio de cabelo, nada abaixo do tapete.
- Obrigada.
- Não é um elogio. É quase uma revolta por você buscar vantagens só na órbita do próprio umbigo. Deveria ter vergonha.
Ela não enrubesceu.
- Enfim, Eugênia, acho que é hora de darmos um passeio. Deixe seus óculos sobre a mesa. Isso, pode guardar na caixinha deles se quiser. Você é tão organizada. Olha como ajeita o paninho adjunto como invólucro. Não é uma graça? Mas agora vamos. Poderia perder os óculos pelas tormentas do caminho. Mas não se preocupe, depois voltaremos. Voltará outra.

Pegou Eugênia pela mão e, mais rápido do que surgiu, fê-la desaparecer com a sua presença transformada em ausência em meio à sala de estar. O marido e as crianças retornariam ao anoitecer dominical, ele fatiado entre o descanso de um fim de semana fora e as canseiras dignas do rancho rural. Giraria a chave na fechadura, chamaria pela esposa, tiraria o casaco, notaria que a lareira, costumeiramente acesa para o horário e tamanho frio, estava com nenhum sinal sequer de brasas. Vasculharia os cômodos, todos os quartos, o espaço da empregada, que os havia acompanhado, os banheiros, e notaria posteriormente, na sala de estar, os papéis do imposto de renda, incompletos, últimos registros da esposa.

Amílcar segurou os papeis, folheou alguns. Preparava três severas broncas para a esposa. Sair até tarde da noite sem os óculos, que ela havia deixado esquecidos sobre a mesa, embora bem guardados. Avisar nada para ele, que poderia estar sem a segurança da própria chave da porta. E, por fim, a audácia de fazer primeiro as declarações de imposto de renda dos familiares, antes das declarações dele, conforme descobriu intrometendo-se entre as folhas. Um ultraje. Isso não poderia ficar assim. Mais um deslize desses e Amílcar pediria o divórcio. - Apenas os carros estão no nome dela mesmo.

Foi até a garagem dupla e certificou-se que o carro que a esposa poderia ter usado, para sair para um destino desconhecido, ainda estava ali. - Isso não vai ficar assim.

E não ficaria mesmo. O encosto de renda voltaria com uma devolução. Uma troca na leva. E Amílcar dessa vez não sairia ganhando.

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