18/02/2020

ondas e marés

"A gata mia, boemia aqui não me tens de regresso"
Faz todo o sentido na vida tumultuada do rapper Black Alien, o Gustavo de Almeida Ribeiro, na época da gravação e lançamento do último disco com 46 anos. Outros temas abordados em Abaixo de Zero: Hello Hell são as experiências e problemas com drogas e como quer distância disso para se manter sóbrio daqui para frente. Com filhos pequenos para criar, aumenta até a necessidade de ficar inteiro para essa importante etapa de sua passagem.

Toda essa introdução para colocar o ponto de que nem sempre e muitas vezes a vida do fã não estará em sintonia com a etapa vivenciada pelo ídolo. A diferença de idade acaba sendo decisiva nesse ponto. Embora algumas características entrem em convergência, o que traz a própria aproximação entre fã e ídolo, outros aspectos os afastam e é interessante que se atente para isso. Apesar dos diferentes pontos nesse tabuleiro em jogo de dados da vida, muitos ensinamentos são aproveitados, ou para a hora, de imediato, ou armazenados no freezer das experiências para quando chegar o momento de utilizá-los.

É uma diferença crucial dos fãs para os ídolos, estes que estão em um aspecto de transição dos 40 para os 50, dos 50 para os 60, dos 60 para os 70 ou até onde forem. Vivenciaram muito mais coisas, colocaram em suas letras, poemas, prosas, textos, blogs, livros, reportagens. Associaram suas vivências e observações com outras vivências e observações. Eles sabem como fazer isso, sabem como conduzir, sabem como infiltrarem-se nesses campos, onde pisar, receitas para o que dá ou não dá certo. E muitas vezes quando erraram, se posicionaram para admitir e para que os mais jovens, ou mesmo de suas gerações ou até mais velhos, não façam isso. São histórias contadas, ensinamentos e alertas.

Outros dois músicos cabem em minhas observações sobre as diferentes etapas em que se encontram, enquanto estou aqui adentrado nos 20 e poucos anos, já em crises dignas de meia idade. O primeiro que lembrei é Humberto Gessinger. Após o encerramento das atividades com os Engenheiros do Hawaii, e a prorrogação do nome Engenheiros do Hawaii com outros músicos, subiu no tapete voador da carreira solo, mas parece que não decolou muito. Lança discos, mas as canções já não emplacam da mesma forma frente a um público que está menos vigoroso com suas empreitadas. Os De Fé que antes tomavam conta da internet estão mais sossegados, em outros passatempos, descobrindo novas músicas ou mesmo acariciando a nostalgia das antigas melodias. Os mais novos vão descobrindo e curtem Engenheiros através de ensinamentos dos mais velhos ou mesmo fuçando pelos amplos arquivos da internet. São letras históricas e que nos acompanham em vários momentos da vida, o que faz todo o sentido que sobrevivam a essas épocas. É como Titãs ou Legião Urbana incessantemente pelos bares em que frequentas, o gerador de memes das noites brasileiras.

Toda essa observação para a carreira solo de Humberto Gessinger, de excursões cada vez mais esvaziadas na web mas de shows ainda lotados para seu sucesso, mesclado às canções antigas, para observar como essa fase entre fã e ídolo pode estar separada em uma ponte difícil demais de obter ligação. É como o trecho de música dele em que nem caiu a ficha e caiu a ligação. Perde-se essa completa identidade que te acompanhava nas primeiras músicas. Ainda há muita highway para quem sabe encontrar seus ensinamentos novamente. Também admiti-se aqui que o referencial nem sempre tem aquilo tudo para se passar. Nem sempre que se pega uma caneta ou um violão muda-se por completo a vida do ouvinte ou leitor. A inspiração tem de estar do lado de lá também. A vontade de se inspirar com a inspiração tem de estar do lado de cá também.

Toda essa observação para afirmar que não tenho me identificado como me identificava e mesmo as canções antigas estão guardadas em recantos emocionais de meu coração; nem sempre mexo neles. De vez em quando é bom ouvir, lembrar disso ou daquilo, relembrar uma lição ou outra, mas "agora é bola pra frente, agora é bola no chão". Tem outros grenais.

Outro gremista nessa viagem toda é o músico de Venâncio Aires, o Wander Wildner. Em alguns pontos em comum com Gessinger, o fim da banda Replicantes como conhecíamos e a partida para uma carreira solo, que já dura bem mais tempo. Muitos e muitos discos, passando dos 13 para 14 volumes. Com ele vivo outra identificação, a carreira solo me diz muito mais do que Humberto tem me dito. Mesmo assim, a noção de que Wanderley Luis Wildner é agora e sexagenário, nem sempre vai abordar sexo e drogas e desejos obscuros em suas canções.

É bem provável inclusive que não faça mais isso. Não muito. Está em uma fase mais calma, em um autodescobrimento, vivendo entre os shows no extremo Sul brasileiro e as voltas para Santa Catarina, para relaxar entre o Campeche e o Balneário das Gaivotas. Comenta em entrevistas que está aprendendo com a física quântica, que pensa em matéria e energia, que a energia e as vibrações ditam muito do que ocorre e nos cerca. E quem ousa dizer que não? A biologia, a química e a física estão por toda parte. E nós poquitos aqui tentando surfar melhor nesse mar e moto. Com essas explicações, reflito e refriso que tenho me identificado mais com as paradas de Wander, que está lançando álbuns quase anualmente em músicas inéditas e regravações. Inédito pelo que está acontecendo em sua vida, se descobrindo e passando mensagens adiante; regravações do que para ele continua importando e fazendo sentido subir em um palco e mandar ver para os novos fãs que o descobrem e para os antigos, com o tamanho respeito ao carinho nostálgico de cada um.

Ser músico é um pouco dessa transição. Continuar surfando nessas águas, com novas manobras, novos alcances, novas praias, mas entender que não se pode desancorar por completo dos passos que feitos. As pessoas consomem suas músicas, seus discos, suas ideias por um acúmulo. Algumas serão eternamente gratas pelo primeiro disco, pelas primeiras canções e outras vão seguir acompanhando a carreira porque ainda se identificam, apesar da diferença de idade.

Um escritor também passa por isso, como o próprio uruguaio Eduardo Galeano, de maior fama pelo livro de brilhante título também, as Veias Abertas da América Latina (que Black Alien parece ter adaptado daí, ou não, para renomear nossas Américas como Latrinas de outros). Galeano muito comentava sobre adaptações, mudanças que faria nas Veias Abertas (da América Latina), mas o que estava feito, estava feito e as pessoas compravam e liam e assim estava um dos maiores feitos do escritor uruguaio, de tantos outros títulos importantes em latinidades.


Wander Wildner comenta bem essa ideia de assimilar por seus antigos fãs e por seus fãs que seguem o acompanhando, em um grupo que parece melhor acolher os que chegaram por último. Tem espaço na janela do bonde ainda, ao que me consta opinar. O músico das pequenas multidões, como é chamado.

Muitos desses escritores, músicos, artistas em geral, passaram por períodos de baixa, perrengues grandes, o que também é combustível para contarem suas experiências. Transformarem os maus bocados em canções, poemas e prosas da melhor qualidade. É o dito aquele do mar calmo não formar os melhores marinheiros. Entretanto, é o fã procurar entender essas diferentes etapas da vida de cada um. A hora de acelerar e a hora de puxar o freio. A hora de aproximar e a hora de distanciar. A hora de colher e do que já não nos identificamos tanto.

Humberto Gessinger dizia que produzia a sua arte, conforme sua introdução em rede social de que "faz música" e faz música com o que ele sente, com o que ele vive, com o que acredita. Conta que não liga muito para o que vão pensar e fazer a partir do que ouvem de seus trabalhos, mas que segue fazendo. É um ponto confiante de quem sabe que essa receita já deu muito certo. Escritor voraz desde a juventude, produzia muitas letras de músicas e boa parte de seu material nunca foi utilizado. Acreditou, apostou onde estava confiante e colheu safras cheias. Segue embalando melodias com suas crenças e ideais e encontrando quem escute, dos mais velhos aos mais novos. Bom para quem está em sintonia.

A relação entre quem busca um referencial e quem é o referencial é assim. Os navios precisam dos faróis, mas não vão estar sempre próximos aos faróis. Às vezes nos arriscamos a outras águas e navegações mais distantes. Suas luzes ainda estarão lá, para outras embarcações que necessitem na hora certa em um certo lugar. O próprio Humberto me auxilia a encerrar, onde é preciso deixar a onda te levar.

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