Havia chegado em uma área escura com raras luminosidades. Aliás, assim se desenvolve sumariamente esse nefasto episódio capaz de colocar em dúvida a sanidade dos mais sãos. Para quem tenha o fio desencapado para o absurdo, o prato é cheio, mas não se recomenda repetir.
Todavia, afirmamos aqui que havia chegado em uma área escura com raras luminescências. Agora pensando em tal descrição, era como que uma feira, daquelas quermesses organizadas aos dias de santos juninos. Mas tudo era mais sinistro, a começar pelo esforço para enxergar o que cada casa significava. As paredes eram escuras e inalcançáveis, tanto ao esforço apertado dos olhos quanto na possibilidade de sair do centro daquela área rumo às extremidades. As pernas quase que paralisavam. Era, sem dúvida, um pesadelo.
Ao passo que se movimentava pelo centro daquelas inebriantes cavernas com raros e confusos letreiros luminosos, ele sentia-se como quando era criança e via as vendas de bebidas alcoólicas dos capetas e outras misturas. A proximidade com outras misturas e o próprio capeta era real dessa vez. Em deslocamento tentando entender onde estava, também sentiu como se ali fosse um cabaré obscuro, onde o visitante, não importando quanta grana portasse, não era bem-vindo. Mas algo nas luminosidades, em graus vermelhos e fluorescentes, chamava a atenção dos iniciados.
Conseguia assemelhar aquele episódio às festas obscuras de sua vizinhança imediata, quando o abuso de drogas se fazia sentir pelo excesso de gritos, em grandezas diretamente proporcionais. Não sabia a que tipo de rituais, exatamente, se dedicavam, mas sabia que algo ali havia de místico nas reincidências e no crescente interesse de diferentes participantes, aqueles que estacionavam seus carros, povoando as vagas nas madrugadas mais gélidas ou mais quentes.
Naquele buraco em verossimilhanças com o aprofundar de uma caverna, tentava achar uma saída. Ao menos buscar que mais presenças conhecidas o indicassem algum caminho. O melhor, para fugir dos repentinos arrepios, era cair fora. Mas algo despertava sua curiosidade para prosseguir nas entranhas daquele esconderijo.
As mulheres que, em circunstâncias normais àquela espécie de beco, deveriam estar em danças convidativas, na verdade auxiliavam no cerco do ambiente. Viu genitálias estranhas e formatos que não condiziam com a realidade. Apesar disso, experimentou alguma entrada ao acaso. Uma péssima escolha.
A escuridão de fora com o exibicionismo das luzes de neon piorou ao cruzar aquela porta. A única certeza que ele tinha é que tudo aquilo estava distante das civilizações cidadãs. Era no meio do nada, isto era. Ele deparou-se com uma sala macabra, que, entretanto, apresentava elementos comuns à sua memória. Uma cama de casal com os trançados véus de um mosqueteiro para proteger dos insetos em geral. Um aquário ao canto, com um peixe a rodopiar inquieto e a produzir bolhas, um estado de vida naquela fantasia de mau gosto.
Notou que a cama de casal ficava para um canto, enquanto uma mesa rústica, em grossa e secular madeira esperava a reunião de não sabia quem. Não sabia se ele era um dos convidados a se sentar à mesa ou um mero intruso. Sentia-se intrusivo. Absorvia o que aquela escuridão poderia trazer de novidades.
As cadeiras, sim, estavam posicionadas. Formavam o aproximado desenho de uma circunferência, como se a aguardar um ritual. Nos vultos fantasmagóricos que só poderiam interagir-se daquela maneira em um sonho, percebeu ao menos uma criança, muito pequena, naquela idade em que ele nunca sabia entre cinco e oito anos. Deduziu que ela era o mais nova possível. Se não tivesse os cinco completos, talvez até mesmo quatro era de se considerar. Era loira e a representante mais velha, provavelmente de sua ascendência, era a interlocutora para suas movimentações. A criança aparentava um estado normal. Caindo ele na realidade e batendo o martelo de que a criaturinha deveria ter entre os 4 e 5 anos mesmo.
A fim de tornar a treva menos volumosa, a tia daquela criança produzia chamas em velas. Uma de cada vez ela foi aumentando a luminosidade daquela antiquada toca, que, na ausência dos ventos externos do covil em forma de caverna, mantinha todas as velas acesas. Apesar disso, ao invés do ambiente tornar-se mais aconchegante e sinalizado, aquilo parecia ainda mais fantasmagórico. Tantas velas acesas ao entorno da mesa e, mais do que isso, agora também circundando a própria cama, com suas colchas e os véus dos mosqueteiros de renda.
Ele assistia, imóvel, àquele espetáculo ritualístico. Se perguntava o que poderia acontecer. A criança carregava uma boneca sob seu braço e fazia voltas e mais voltas naquele recinto, talvez imaginando alguma brincadeira que não compartilhava em voz alta. Estava andarilha, despojada, mas carregava sua própria seriedade nas escolhas de caminhar para cima e para baixo. Enquanto ela se movimentava como uma partícula descontrolada, a tia, ao que ele descobriu por meio da criança chamar-se Tia Jenny, mantinha sua postura cuidadosa em acender, vela após vela, aquela procissão fétida em cera.
Quando o fogo beijou o pavio da última das velas posicionadas e a composição estava em total sintonia, a criança aproximou-se da tal Tia Jenny. Olhou em aparência tímida, só faltando a pequena levar algum de seus indicadores, o que não estava ocupado de carregar a boneca, aos lábios. Com sua voz fina, como um risco naquele silêncio mortuário e com Tia Jenny agora prestando-lhe atenção, ao terminar a tarefa encarregada das velas, a menina manifestou-se:
Tia Jenny... também sou um demônio.
O turbilhão impactante dessa frase trouxe a histeria ao intruso visitante. Seus ouvidos foram brutalmente atacados por um turbilhão de sons. Seus olhos estavam voltados à cena da transformação da pequena em maléfica figura misteriosa. O olhar da pequena e o de Tia Jenny se misturavam em um só, hostil, como uma besta selvagem, insaciável, pronta para atacar sem perguntar antes.
O visitante foi acometido pela transformação, tentava reagir contra os horrores que sua mente presenciava e não mais poderia esquecer. A manipulação mental, criada através daquele peculiar ambiente programado, jogou para o seu sistema nervoso central uma carga imparável de imagens. Rostos, sobretudo rostos passavam diante de seus incrédulos olhos ainda vivos. O visitante se mexia em espasmos, como em convulsões, como se uma epilepsia o acometesse. O pobre sujeito agora encontrava-se deitado a rebobinar aquela violenta fita, que se assemelhava ao encontro de uma onda gigante contra um frágil e desprotegido banhista.
Ele via rostos que não identificava, cenas ligeiras, todas sobrepostas, como uma imensa colagem, como um álbum de fotografias que jamais havia visto, que não lhe pertencia e que não pertencia aos seus conhecimentos; nada que ele já tivesse visto. A sobreposição de imagens o enforcava, como uma corda que apertasse seu pescoço, como se os olhos estivessem em sobrecarga de informações. Faltava-lhe ar e poder de reação. Achou nisso que estaria perdendo para a onda violenta e ensurdecedora.
Como a mente ainda trabalhava, ele pensou que estava passando por uma transfusão de memórias, de informações, de sentidos, de corpo e, por que não, de alma. Sentiu que precisava reagir e pontuar-se como sujeito pensante, como criatura ainda viva em seu corpo inicial. Apesar de seus desgostos pela vida, defendeu-a com unhas e dentes, como afirma o ditado, mas muito mais do que isso. Se impôs contra a cinematografia macabra a qual era obrigado a assistir. Não aguentava aquele contorcionismo de imagens, todas irreais para suas memórias, nada ali pertencia e, talvez, nem humanamente possíveis eram as grotescas imagens.
Se apoiou na mulher que amou, na família que estaria com ele, nos clubes de futebol para os quais torcia. Tentou apoiar os pés no chão daquela areia movediça que o engolia aos poucos. Tentou ficar bandeira de quem ele era para não mais esquecer. Para não deixar aquele turbilhão imagético tomar conta de suas faculdades cerebrais. Mexia incontrolavelmente os braços como se à procura de uma boia para a salvação daquele nítido e impassível afogamento.
Quando sentiu que suas crenças e aquilo que ele amava vencia a batalha, ao menos a batalha, que adiavam àquela transfusão total e forçada, aí conseguiu paralisar seu corpo, o que, em meio aos espasmos epiléticos, o pareceu positivo. Estava deitado como um derrotado de uma luta, mas que entendia que naquele round ainda vencera. Estava estirado ao solo, sem se importar se o chão estava molhado ou onde estava, mas com alguma consciência de ainda estar vivo e em seu cérebro, em sua mente. Odiava muitos de seus incômodos pensamentos diários, mas agradecia naquele segundo por ainda poder pensá-los como antes. Tentava se mexer, mas ainda era cedo para reagir daquele processo desgastante que quase custou sua vida.
Enxergava, ao fundo da desfocada visão que lhe sobrava, enquanto emergia pelo canto de sua boca filetes de saliva, enxergava pessoas vestidas de branco, uma após a outra, a deixarem o recinto. Permanecia imóvel, em seus pensamentos talvez ouvidos por aqueles, talvez não, a raciocinar que tipo de ritual havia sido submetido. Sentiu que, por detalhes, não havia sido capturado para outra dimensão, para outra história que ele não poderia controlar. Sentiu que sua vida pendia por um fio, mas as pessoas de branco saíam do recinto, uma após a outra, em uma aparente desistência. Talvez a invocação daquele mal exigia demais deles para uma noite.
Talvez ele estivesse a salvo. Talvez precisasse fugir. Ainda percorrendo por suas retinas imagens daquelas cartas jamais vistas, rostos desconhecidos, momentos de infância que não lhe pertenciam, quando conseguir apoiar os dois pés ao chão em movimento de se erguer, correu. Correu como a velocidade da luz para longe daquelas trevas e gritava e gritava somente para ter a certeza de que possuía voz e a voz era a sua mesma companheira inerte.
Talvez ele estivesse a salvo. Talvez outra noite dessas seja fatal.
06/02/2020
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