13/02/2020

a terceirização da culpabilidade

Pessoas gostam de ter do que reclamar para eliminar, escantear, diluir suas parcelas de culpa. É como se fossem comprimidos colocados à língua na espera de que sumam e tragam alívio e paz.

Por experiências próprias e que observo, percebo como essa regra se aplica constantemente aos arredores. As pessoas se relacionam com pessoas ruins para o seu bem estar, que fazem mal para elas, mas insistem, na esperança de que esse sofrimento trazido seja superior ao que a própria pessoa se causa. É a terceirização da culpa, o jogar o problema ao próximo, é apontar o dedo de que o outro é o problema. Na frase clássica, utilizada em tantas literaturas e até músicas: o inferno são os outros.

Uma sociedade carente de atenção e relaxada em relação à autocrítica. As pessoas não percebem onde erram e porque erram, assim estão fadadas ao encalço de insistir nos mesmos erros. Procuram o progressos, encontram o entrave.

Mas essa cancela posicionada devidamente na região do abdômen, próxima ao vital órgão chamado âmago, na verdade é um desejo intrínseco no vivente. Ele quer estar ali bloqueado, onde, através de suas reclamações e resmungos, sente-se conciliado consigo próprio. A sensação de arremessar a culpa nos demais como se fosse uma rede de pesca é tudo o que esse pescador de ilusões necessita.

A culpa está na família, no emprego, na falta dele, no sistema, nos amigos, mas jamais em si. É como um enfeitiçado incapaz de ver sua flagelação disfarçada. É como uma estátua petrificada em visão.

A culpa está sempre adiante, nunca no núcleo de quem a sente. Essa terceirização, o observar da culpa à distância satisfaz o indivíduo sofredor. Prefere ele sofrer pela culpabilidade de agentes externos do que sentir-se o motivo da própria injúria.

A condição de vítima é sua monumental preferência, desde que saia inocente do processo jurídico de sua mente. Sentado ao banco dos réus, mediante seu próprio juizado, é batido o martelo de sua inocência. Os pequenos homenzinhos, presentes e enfileirados tal qual no imaginário do personagem principal de Exército de um Homem Só, de Moacyr Scliar, esses aplaudem o indivíduo e o encorajam a seguir assim.

Que assim seja, ouve-se o amém. Não precisa mudar um pelo, não precisa cambiar uma pena de lugar. Está tudo devidamente como deveria estar, seja sua essência e culpabilize os terceiros. A mão da inocência e da benevolência apalpa seu couro cabeludo como se domestica a um cão. Os afagos são muito merecidos nesse encontro com a calmaria após a explosão do tempestuar. A descoberta de que a culpa estava o tempo todo nos agentes externos faz a água tornar-se cristalina e o jorro é satisfatório como o esguichar de um hidrante na calçada de uma rua asfaltada envolta em um calor de 40 e poucos graus.

Entretanto, não encarar de frente a problemática constituinte obriga nosso nobre indivíduo social a repetir sus errores logo adiante. Com isso, o insigne relevante de sua própria vida vai cair em novos buracos pelo tumultuado caminho. Aos tropicões seguirá resmungando contra quem colocou toda e qualquer pedra em seu trejeito, inclusive contra as inofensivas pedras que choram sozinhas no mesmo lugar, como diria Seixas.

Esse indivíduo se torna destrutivo e autodestrutivo. É plenamente perigoso pelas artimanhas que sua mente distorcida formula, encarando inimigos a torto e a direito, mais a torto do que a direito. É como um guerrilheiro cego com uma metralhadora em suas mãos, incapaz de se guiar inclusive pelas vozes de seus companheiros. Enquanto catapulta suas missões impossíveis, porque o combate deveria ser muito mais interno do que externo, ao menos nesse âmbito inicial de que procuramos aqui desenvolver a questão, o indivíduo regressa de seus cansativos dias contra inimigos imaginários e distanciados e tenta, em paz com seus tribunais cujo é dono, desfrutar das horas de sono antes das próximas sanções causantes de seu protocolo ranzinza. 

É importante lembrar que essa esfera pode existir tanto no ramo afetivo como profissional. Colocar sempre a culpa sem horários, em seu local de trabalho, em equipamentos, no bebedouro, no chefe, na caneta, no tinteiro, na máquina, no computador, na enfermeira, na secretária, no enfermeiro, no secretário, na colega, no colega, no transporte, na venda, no armazém que acerca seu ofício, tudo isso tende a desviar o foco do que a pessoa pode fazer por ela mesma. Onde é possível, entre seus afazeres, minimizar os transtornos que talvez estejam realmente nesses itens citados, mas que podem ser combatidos, enfrentados e não somente resmungados aos quatro ventos?

É possível que se continue o pensamento e as ações críticas aos fatores externos e extenuantes do dia a dia, mas não se pode perder de vista os erros próprios a serem corrigidos. A autocrítica que, severa demais é amarra, mas, presente como se deve existir, faz com que as noções de culpabilidade permitam o avanço e o progresso em condições de vivência. É encarar essa máxima com o ideal de um legado do amanhã superar o ontem. Façamos nós mesmos uma luz brilhante nesse mundo canalha.

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