11/01/2020

perfil

Ela havia terminado com ele. As fotos na internet eram sempre deles juntos. Eram poucas fotos, é bem verdade, mas as existentes eram em dupla. O casal em aniversários, um ou outro casamento, em passeios dominicais ou até antes das atividades que praticavam clandestinamente pela cidade. Apesar dela ter tomado a iniciativa, sentiu o duro golpe da separação. Algum fio de cabelo ou perfume em roupa de inverno sempre ficam de heranças remotas.

Mesmo algum escrito ou principalmente nas redes sociais, essas metamorfoses ambulatórias e compulsivas. Tentou apagar o máximo possível. Como se fosse retroceder os passos e passasse um delicado pincel ou escovinha sobre as pegadas desenhadas. Serviço demorado, que no computador soa mais rápido em um alerta de mensagem se deseja mesmo excluir e mandos para a cada vez mais abarrotada lixeira. Mentalmente ainda estava distante de se livrar, mas os traços eram apagados para os demais por meio dos cliques.

Só que havia a dúvida de qual foto repor, ao menos no perfil principal de troca de mensagens, entre amigos e quem sabe alguma futura criatura para desenvolverem-se a dois. Ela não sabia qual colocar. Namorou as fotos dela própria em vestidos negros ou vermelhos. Arrumações, maquiagens e penteados que não eram habituais. Sentiu tudo muito aquém ou além do que ela realmente era, flor complexa. Mesmo os mais estudiosos não nomeariam tantos detalhes físicos e psicológicos daquela espécie. Não sentia confiança de se separar oficialmente, no que se referia àquelas imagens. Não se via só muito bem nas fotos e permaneceu ainda mais solitária não tendo sequer sua imagem de solteira resgatada. Tentou se fotografar com webcam, celular, câmera digital e nada satisfazia. Nem ângulos, nem sorrisos, nem roupas, nem cabelo para um lado, nem para o outro.

Resolveu deixar a foto para o outro dia. E do dia seguinte adiava para o posterior. E do posterior para mais adiante. E assim sucessivamente. Foi deixando passar e logo não notou diferença, era ela ali em carne e osso a falar, mandar mensagens, nada havia mudado. As amigas e amigos haviam, sim estranhado, sentiam falta de algo mais humano a conversar do outro lado da tela. Afinal, aquela ausência de foto representava uma figura neutra e automática da rede social. Um contorno de semblante, sem penteado, sem cabelos específicos, sem diretrizes de nariz e olhos, sem a boca, sem pintas no rosto, sem um tamanho de orelhas, sem o abrir de um sorriso ou a expressão pensativa de uma testa franzida.

Aquela era ela, ao menos nas redes. Um perfil inexpressivo, ainda alimentando sonhos, pensamentos, opiniões, criando piadas, respondendo de bom ou mau humor, a variar da noite para as cansativas manhãs, mas ela não tinha face por ali. Foi de uma atividade notívaga bem humorada que desligou o notebook e deitou-se, escorando delicadamente a cabeça ao travesseiro. Virou-se de lado e encontrou o mundo irreal dos sonhos. Ao acordar, repetiu os hábitos e foi ao banheiro onde se deparou com o espelho estranhando-o. Podia ser por recém ter acordado, mas achou seu cabelo mais reduzido em relação ao jeito que ela gostava. Quando foi maquiar-se, sentiu o nariz menor, apalpou-o e, como fazia em relação a ausência de foto, deixou para lá.

No café com as amigas, elas quase não a viram chegar. A moça logo notou que elas haviam notado algo também. Mas todas deixaram para lá. Ao menos ali. Se fofocaram depois, ela, obviamente, não ficaria sabendo. Naquela noite, ao finalizar as conversas nas redes, outra vez olhou para sua foto de perfil vazia e inexistente. Talvez amanhã preencheria.

Acordou no outro dia com calor. E foi a única coisa que sentia. Nem sono, nem fome. Estranhou. Foi ao espelho para os hábitos de higiene, como escovar os dentes. Pensou em prender o cabelo para encarar o dia caliente, mas ao tentar segurá-lo para tal armação, notou que o cabelo estava muito curto. Estaria perdendo? Seria fruto do estresse da separação? Do trabalho, dos últimos dias? Do que seria? Foi até o travesseiro e nenhum sinal. De repente estava alucinando, estava imaginando coisas, talvez com a terapeuta podia ver o que seria melhor para reorganizar as ideias.

A consulta era mesmo naquele dia, pensou com alívio. Se dirigiu para lá e aguardou por alguns minutos na salinha de espera até o seu horário. Viu o seu rosto de relance no retrovisor enquanto transitava para lá e, na sala, conferiu de relance no galão de água que refletia sua expressão cada vez mais atônita e preocupada no reflexo trêmulo do plástico e do que ela beberia. Não se reconhecia, de fato.

A psicóloga chamou por seu nome e a própria mulher, poço de sensatez e calmaria durante os dois anos em que se consultavam, tomou um senhor susto. Não a reconhecia. Tentou manter a compostura e perguntou o que ela havia feito no cabelo, mesmo notando que não era apenas isso que mudara. A jovem sorriu torto e tentou explicar também mentindo. Ao voltar para casa, vinha pensando que nunca mentia à psicóloga, mas estava tão forânea que não viu mal agir assim. Percebeu que a própria profissional, figura de sua absoluta confiança anteriormente, agia diferente com ela. Ela havia mudado ou fora o mundo todo?

Nisso tudo, inclusive tinha compromisso com as amigas, mas lembrava e remoía a expressão delas, como se a não conhecessem e resolveu não ir. Se trancafiava em casa. Só faltou jogar a chave fora. Quando o próprio cachorro, que ela alimentava sempre antes de sair de casa, não obedecia seus chamados, viu que a gravidade era sem precedentes. Não aguentaria esse ritmo. Teve vontade de dormir o máximo possível. Dormir até ter sua vida de volta, como era, com ela sabendo quem era e com os outros a tratando como sempre a trataram.

No outro dia, ao acordar, entrou em pleno pânico. Não tinha mais cabelo, era uma careca à sua volta, mas, após a percepção inicial pelo tato das mãos contra o agora inexistente couro cabeludo, a surpresa maior, o fatality veio diante do espelho. Aquele reflexo do banheiro contínuo ao quarto que quase sempre a iluminava, deixava radiante e preparada para encarar a vida do lado de fora, agora mostrava o equivalente ao nada: o nada que esperava tradução na música de Humberto Gessinger era a ausência de perfil nela. Nem olhos, nem boca, nem nariz, nem volume como maçãs do rosto. Ela nunca havia presenciado algo semelhante e o que era pior: se tratava dela própria.

Naquilo tudo, ainda teve tempo para pensar que não sabia como continuava enxergando, pela ausência de olhos na sua face. Apenas uma silhueta que dava indícios de que ali se formava uma cabeça e nela deveria haver um rosto. O rosto ela não sabia onde estava. A voz, ao chamar o cachorro, percebeu que estava no lugar. Parecia mais uma escassez de sanidade psicológica do que qualquer outro tormento.

Tentou tomar remédios, mesmo engolindo junto e podendo ter uma overdose. Curiosa pela experiência macabra que estava a seguir, tomou pelas mãos os comprimidos com água e, bem diante do espelho, levou-os ao que antes era sua boca. Conseguia engolir, sim e a imagem transpassada no espelho era apenas do sumiço dos comprimidos e daquela água. Nada daquilo parecia possível ou que alguém iria crer, caso contasse. Pensou para quem contar, mas quem haveria de querer saber e lhe dar crédito? A psicóloga que tão estranho agia, as amigas tão vagas e que davam a impressão de abandoná-la...

Tratou de manter fechadas todas as janelas da casa, em total reclusão daquele dia. Ligaram do trabalho e não atendeu. Deixou cair para as caixas de mensagem e enfrentava uma verdadeira resistência dela mesma com a internet. Não sabia se saía para espantar o mundo e ser internada ou fundia mais alguns comprimidos e esperava a ação que só poderia ser uma: a morte.

Mas com o passar das horas e nada mudando, antes da decisão final, resolveu, naquela sequência que parecia inacabável e que a afastava incluso de sua própria memória, anexar uma foto, qualquer que fosse, dela mesma no computador.

Que ao menos então os amigos, a psicóloga, os ex, quem quer que fosse, lembrasse dela, de forma póstuma, com uma imagem digna. Ela que se considerava bonita, ela que antes não tinha problemas de confiança, ela que tinha dificuldades, mas passava por cima de muita coisa. Ela filha, ela mulher, ela irmã, ela amiga, ela profissional, ela estudiosa, ela batalhadora, ela tal qual era. Sacou uma foto sem muita demora e anexou. Anexou na rede de conversas, na rede de posts, na rede de fotos. Morreria, mas morreria com essa última dignidade, porque não havia passado a senha para nenhuma amizade e talvez demorassem tempos e mais tempos a excluir aquelas contas. Assim se despedia.

Em um ato com tons de espetáculo macabro, ela gostou de tomar o comprimido na boca inexistente em frente ao espelho. Separou mais alguns, mas quando parou diante da estrutura de vidro, a surpresa. O cabelo estava voltando, os olhos ao menos tinham formato e já se fazia sentido em poder enxergar, o que antes não acontecia. A boca estava novamente carnuda, os dentes em seus lugares, o sentir o gosto, o respirar aquele cheiro mais de limpeza do que de banheiro. Tudo estava voltando. Levou a mão às faces e as acariciou. E se sentiu. E desafogou as mágoas que fechavam sua garganta. Largou os comprimidos, deixou-os cair. E que caíssem para longe, não importando se no ralo. Ela havia voltado.

Prometeu que lembraria desse momento e não se deixaria abater dessa mesma insegurança. Sairia para respirar melhor, saindo do aperto daquela tresloucada passagem e para testar a sua sobrevivência. Não perderia seu perfil. Ela, através das fotos, dos escritos e de tudo o que sabia já ter passado, não se esqueceria de quem era.

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