19/06/2018

Lutas e Gratidões

Minha irmã acorda tarde, toma o café da manhã tarde e reclama do almoço, que é servido em um intervalo de tempo curto entre as duas refeições. Minha mãe acumula cabelos brancos que ela não mais esconde e estresse que não mais segura, entrando em erupção de quando em quando. Hoje foi um desses quando.

Mais tarde, entre o almoço e um jogo da Copa do Mundo na televisão, minha vó aparece de jaqueta rosa e óculos escuros bastante chamativos. Em um horário que muito bem poderia ser de algum pedinte, geralmente uma senhora negra com uma filha com necessidades especiais e que pede leite ou algum ser adulto não disposto ao trabalho para o ganha pão. Confiro para confirmar pelo olho mágico e abro a porta para minha vó na certeza que o jogo entra em segundo plano, porque ela insistentemente e incessantemente puxa assunto ou narra com detalhes episódios cotidianos de pouca relevância. O encontro com as mesmas vizinhas, uma ou outra palavra trocada na frente de casa ou no caminho para ônibus ou em armazém. Pequenos causos de pessoas as quais não conheço e que para minha mãe pouca diferença faz também são uma constante.

Porém, ela conta de uma conhecida, alguma família que adotou uma menina. E minha vó a caracteriza que dizem ser muito alegre, muito obediente. E sobre algo que a ofereceram, se manifestou com "tudo isso é para mim?", com as mãos cruzadas sobre o peito, em claro e universal gesto de agradecimento. Tem três anos, completa os dizeres minha vó. E tudo isso me leva a uma reflexão sobre gratidão, uma reflexão que na minha mente ocupa e ocupa o primeiro plano. O jogo passava ao segundo posto, mas logo voltaria à tona por outros encaixes.

Às 14 horas na pontualidade terminava a partida da Copa do Mundo com a surpreendente (para alguns nem tanto) vitória de Senegal sobre a Polônia em plena capital russa de Moscou, local de muitos acontecimentos de injúrias raciais. Racismo não escondido. Jogadores negros na atualidade, mais e mais pessoas em antigamente. Ou talvez menos antes sem o advento da globalização dos dias atuais. A globalização que coloca jogadores negros em praticamente todos os times titulares das seleções da Copa, com exceção do extremo oriente, Argentina e a própria Polônia. Outras, se não tem na titularidade, tem reservas imediatos que costumam adentrar nos jogos.

No mesmo horário de término do jogo com triunfo senegalês, uma senhora que aqui é pedinte há bastante tempo retorna em busca de mínimo sustento. Seus filhos já não são pequenos e agora buscam driblar as condições desfavoráveis em busca de emprego ou desviando do mundo mais ilícito de drogas e assaltos. Nada fácil. Frutas e leite e um papo cordial são o que minha mãe oferece à senhora. Um de seus filhos é Romário e, não recordando o nome dela, apenas a lembro como Romária.

Com outros endereços, certamente não são poucas as pessoas nessas condições no município e região. Políticas públicas insuficientes, políticas privadas desinteressadas, procurando apenas por consumidores e não por fazer caridade ou procurando apenas a solidariedade como troca por promoção de carisma e serviços aos olhares dos aí sim consumidores, potenciais clientes. Trocas de favores e espelhos. Reflexos e vitrines.

Em outras cidades gaúchas, incluindo Pelotas, como estão os imigrantes senegaleses? Um momento de cessar o trabalho ambulante, as vendas nos centros e focar um pouco no jogo, na ginga. Um resultado favorável, uma vitória consistente. A alegria nos olhos e nos corpos. Vencer o preconceito é uma batalha muito mais árdua, mas que tal esse tapa no frio, tapa aos que oprimem, deixam mal vistos os imigrantes de hoje, esquecendo suas raízes italianas, alemãs e de outras etnias que um dia foram imigrantes, estrangeirismos nessas mesmas terras.

Numa primeira rodada em que a Alemanha perdeu e numa Copa em que a Itália nem está, a vitória imigrante do Rio Grande do Sul na estreia da competição foi senegalesa. E são tantos os homens e tantas as mulheres, tantos os descendentes, mais diretos ou de povos passados do continente africano, tantas as histórias de linhas torcidas a procurar seus triunfos no dia a dia nesses lados do mundo.

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