Mais próximo ao estádio, um posto de gasolina está tomado. Tomado de gente tomando. Fico pensando que essa hora é de potencial sagrado. O desestresse, a saída da mente do dia a dia para os 90 minutos do jogo. Se o trabalhador, se o cidadão não passa por essa transformação, por essa sessão de descarrego, é possível que sua situação torne-se insuportável. Coloque-se a culpa nas jornadas, em seus subempregos ou empregos que nunca sonharam, mas cumprem, nas condições precárias do país. Ok, ok, futebol para hoje. Esses assuntos para outros textos, mas vocês sabem bem como é.
É o primeiro jogo do Pelotas em casa na divisão de acesso da temporada. A primeira vez do time diante da torcida. A identificação como imprensa foi deveras fácil, como eu não previa. A associação gaúcha tem complicado a entrada, mas nada nos tira o brilho e o ânimo. Subo até a cabine, outro ótimo ritual. Cada degrau como uma vitória, como um marco triunfante até a visão privilegiada do gramado. Aposto que todos que adentraram um estádio pela primeira vez sentem-se marcados pela visão do gramado. O gramado é que merece as maiores atenções. Ali, em cima dele, os destaques que vão ser noticiados, comentados na saída, na volta para casa, comentados para as esposas, para os maridos, para os filhos, para os netos, nos bares com os amigos, no barbeiro, na parada de ônibus, nos cafés. Ali em cima muita coisa pode acontecer. Do zero a zero em que se destacam a bola na trave ou a ótima atuação do goleiro, a uma goleada e a ótima atuação do passista ou do centroavante. Tudo isso pode acontecer.
Na cabine, o nome da rádio está bem marcado, mas não tivemos condições financeiras, ações antecipadamente decididas para transmitir. Mesmo assim, uns cremes de café, novidades estampadas em panfleto como "o primeiro creme de café do Brasil", me agradam. Encho a mochila com eles, sabendo que os demais componentes da rádio não vão dar as caras. Vários sabores, do café tido como tradicional, até morango e menta. Minha família vai gostar.
Desço os degraus da arquibancada e vou em direção à parte de baixo, para contornar o estádio por dentro e depois subir novamente. Meu pai sempre defendeu que o melhor jogo se olha da linha divisória do meio campo, ou próximo a ela. Assim se enxergam as duas metas e nos dois tempos. Tanto faz sentido que as nossas cabines de transmissão são assim posicionadas, do lado oposto ao escolhido por ele na arquibancada, mas com visão semelhante. Tudo para o narrador e o comentarista estarem atentos aos dois lados. Nos dois tempos.
Nos estacionamos ao lado de uma das poucas barras de tecido dessa ocasião. Presto atenção nos pequenos detalhes, das crianças das escolinhas de futebol que entram em campo, às faixas com dizeres distintos, amarradas cedo no alambrado, aos poucos torcedores visitantes, cerca de meia dúzia de rubro-negros do adversário da noite, Guarani de Venâncio Aires.
Numa rápida passagem aos acontecimentos de dentro de campo, alvo das notícias, entrevistas e repercussões, mas não desta crônica, o jovem time do Guarani surpreendeu com um golaço de fora da área. E o Pelotas pouco conseguiu reagir no primeiro tempo, causando espanto, pânico, cabeças cabisbaixas nas arquibancadas.
No segundo tempo, uma expulsão nos rubro-negros serviu de vez para igualar o jogo e, após outro gol bizarro, a virada. Os dois gols mandantes foram esquisitos. Um com dúvida se a bola transpassou da linha e outro por uma pixotada da defesa adversária. Mas o importante foi a bola na rede e os três pontos. O sentimento final na arquibancada era de alívio pela vitória vindoura, mas preocupação para os próximos capítulos, as próximas duras missões.
Após vencer um índio, o Lobo tem outro índio pela frente. Um com mais poder aquisitivo em relação aos da terra do chimarrão. Um outro índio residente de outra cidade com mais descendentes de alemães do que qualquer indígena. No esquisito campeonato da divisão de acesso, onde populares e esquecidos clubes amontoam-se em busca de voltar aos maiores holofotes e cenários, a batalha é sempre árdua, esquisita e única. Como a visão de olhar o verde campo, como se fosse a primeira vez. Ou o anoitecer no inalcançável horizonte. Como se fosse a primeira vez.
Boca do Lobo (Foto: Henrique König) |
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