A maioria de meus textos mais crônicos surge em caminhadas. A maioria de meus sintomas mais crônicos é amenizado caminhando. Não dirijo, mas creio que a atenção exigida ao volante reduza a quantidade de observações, sempre cruciais para a elaboração dessas linhas.
Foi a pé que eu precisava aproveitar aquela última manhã. A praia disponível a todos que nela conseguissem chegar. A praia indisponível ao estado de estar a sós. O sol a brilhar forte desde o asfalto e as calçadas. Cada sombra alcançada em avanço a ser comemorada e valorizada. Como deve ser a vida, com cada vitória, cada pequeno triunfo, pequeno refresco, alívio de dor e intervalo de sofrimento a celebrar. Celebrar para sobreviver, na canção da banda uruguaia La Vela Puerca.
Sotaque argentino pela praia. Transformando a praia em playa. Um casal deles me perguntou informações outro dia. Sobre a rua 601. Os respondi em espanhol para que pensem que também sou um deles. E por que deixaria de ser?
Com um pouco mais de noção das ruas do que dias atrás, caminhei em direção à praia. Grande momento, ápice das voltas quando um cara de uns 30 anos carrega sobre seus ombros largos um aparelho de som que exibe música para a rua inteira. Animador daquele já ensolarado dia. Cruza por mim durante a execução de How I Wish You Here da banda Pink Floyd. Mas não é a versão original dos britânicos e sim uma canção em reggae. Eu elogio o som e ele me responde com voz cavernosa com gírias em um equivalente de "é, não é mesmo?".
Segue sua galopante empreitada de rumo que, em rua próxima à praia se dissolve, se dissipa do meu. Some tão repentinamente quanto surgiu. Volto a prestar atenção nos altos prédios e nas distintas pessoas ao redor. Os prédios se parecem mais uns com os outros. As pessoas são muito variadas entre magras e gordas, novas e velhas. Pela alta temporada e badalação da praia, devem se aproximar em aspectos econômicos que ali nada me interessam.
Quando chego à avenida de nome referente ao oceano que banha suas areias logo abaixo dos concretos, encontro o maior movimento de transeuntes. Revezo minha atenção para desviar fisicamente meu corpo dos que caminham em direção contrária. Ao mesmo tempo, tento pousar meus olhos nas diferentes formas de vida ali presentes. Fotografo alguns instantes sem que me torne intrometido ou invasivo contra os reféns das lentes.
Me chamam atenção os senhores de idade com suas latas de cerveja de marcas muitas delas reprovadas por mim. Ao mesmo tempo, crio uma identificação com esses seres que muito podem se assemelhar a mim, caso eu chegue em suas não referidas idades. Outros deles estão concentrados esportivamente. O dominó é a modalidade da vez. Nas disputadas areias da praia, não há muita área disponível para prática esportiva que denota dessas condições espaciais. Nada de vôlei ou futebol e, talvez com muita habilidade para não incomodar os numerosos vizinhos, um pouco de frescobol poderia estar ocorrendo por detrás de tantos guarda-sóis fincados no terreno arenoso.
São muitos argentinos, como exaustivamente ouvi desde os noticiários até os comentários virtuais ou de quem ali mora, e inclusive passei a repetir essa verdade tida por nós. Alguns identificados em seus aspectos. Homens de pele muita clara, mulheres de rostos tristes. Mas havia, sem dúvida, uma variedade antropológica inestimável, nas ressalvas de diferentes idades e tamanhos. Biosfera pulsante. Migratórios convergentes. Ver gente. Ver gente. Vertentes.
Uns se protegiam nos guarda-sóis. Outros matavam a sede em quiosques. Uns conversavam animados. Os salva-vidas cumprimentavam outros salva-vidas que passavam sob os seus postos. Uns poucos se aventuravam na água, que não é considerada própria para banho em todos os pontos. Outros observavam solitários, como solitário eu estava nessa caminhada.
A polícia sobrevoava a praia lotada de helicóptero. Por vezes, viaturas cruzavam o asfalto no mesmo sentido dos turistas sobre rodas. Motos e carros que ora respeitavam a travessia dos andarilhos, ora ignoravam a sinalização. Cadeiras de praia espalhadas pelas areias e pelas calçadas. A luta incessante por uma vaga debaixo do escoar das águas nos chuveiros públicos. Filas de gente interessada em se refrescar ou em tirar os grãos que sempre estiveram na praia, ou ao menos seus parentes de composição química. Antes do ser humano levantar propriedades, muros, grades, cercas e prédios com 30 andares.
Garçons procurando formar clientes para os restaurantes do outro lado da rua. Importunadores com gritos e tentativas de roubar a atenção. Um método pouco eficiente para me convencer a provar seus pratos especializados, mas método que cavou um lugar neste parágrafo, a título de curiosidade. Pessoas tentando ver pessoas ou tentando ver a paisagem escondida atrás dos prédios ou das demais pessoas. Pessoas que estavam ali, nem fazem muita ideia, nem sabem bem o porquê. Pessoas com tão pouco objetivo quanto os grãos de areia que se escondem entre espigas de milho verde, entre calçados e calções.
Muitos praticavam esporte pelo asfalto. Na pista compartilhada, ciclistas, corredores, skatistas. Uma ou outra pessoa atravessa as faixas de pedestre trajando terno. Vendedores ambulantes. De artesanatos alternativos aos jogos de loteria. Uns praticam esporte preocupados com a forma física. Gente moldada claramente na academia, outros procurando perder calorias. E nada retira a concentração dos jogadores de dominó. E nada retira a tua concentração que costurou lotes em meu peito e reinstituiu ocupações em minha mente.
How I wish you here.
19/01/2018
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