Calor no carro. O ar condicionado dele não vence. Abrir as janelas seria o recurso se a velocidade na estrada não disparasse um barulho maldito aos ouvidos, ensurdecendo a ponto de não ouvirmos os próprios pensamentos.
A rodovia, que era duplicada, já não é mais. Não entendam errado. Não é uma rodovia duplicada que voltou a ser de mão única. Me refiro ao fato de que trechos mais ao norte foram duplicados e quando os veículos escoam suas presenças ao sul, encontram novamente uma estrada de via única. Aquelas em que é preciso adentrar ao espaço da contramão para realizar uma ultrapassagem.
A infraestrutura é melhor lá ao norte, conforme os pedágios são mais baratos. Novamente, não entendam errado. Isto mesmo. Os pedágios mais caros são os da rodovia de mão única. Uma boa investigação sobre prestação de contas poderia trazer magníficos esclarecimentos a respeito.
Não à toa foi um post que partiu da cidade de Pelotas que tomou rumos nacionais e milhares, talvez milhões, de compartilhamentos, a respeito de uma especialista em Direito que afirmava serem irregulares as praças de pedágio. Com uma boa argumentação e o respaldo da lei seria possível driblar esses cobradores. Era o resumo do post que circulou e ainda deve circular na internet. Pois estamos tratando de algo com milhares, talvez milhões, de compartilhamentos.
Sobre os rumos ao sul pela BR de número 116, nesta quase rima de nenhuma graça, as paisagens que ilustram o texto começam a se moldar fortemente após a passagem pela região metropolitana de Porto Alegre, abaixo de Guaíba. Abaixo no sentido dos pontos cardeais ao se observar um mapa. Em outro sentido geográfico, o pampa se estende até onde os olhos se possibilitam ver. Ou seja, não há abaixo. É tudo plano. Em maior parte, a regra é uma estrada reta. Infinita highway.
Qualidades de vida de América Central. Confusas. A estrada que passa Guaíba e tem como destinos possíveis Barra do Ribeiro ou Tapes do Sul. Vegetação de árvores à beira da rodovia. Alguma sensação de sufocamento pela impossibilidade de conferência do horizonte. Curvas. Curvas apontadas em placas e que trazem o desconhecido logo a seguir. O asfalto já não é dos melhores, visualmente remendado. Os acostamentos não são os mais seguros e aconchegantes para abrigar paradas. Breves, que sejam.
Pontos de ônibus. Alguns veículos estão encarcerados como ao inferno de repetir esse trajeto. Lembro a história de um conhecido da família de minha tia, o motorista de ambulância que fazia sempre o trajeto de Santa Vitória do Palmar (o extremo sul do extremo sul) até Porto Alegre. Dias e noites na monotonia que, não bastasse o tédio, ainda reserva os perigos das rodovias brasileiras. Mas um trabalho assaz digno, necessário no abastecimento de saúde à população necessitada em rumar para os maiores centros, ao encontro da medicina.
Mas os pontos de ônibus fadados à condição de celas. Alguns pichados como tais. Só os falta que marquem e contem os dias de cativeiro neles. Mas seria demais na hipérbole dessa exaltação bucólica. Um artista inovou trechos da rodovia próximos à Camaquã com a aparição de gatos grafitados em pequenas obras abandonadas ou mesmo nos pontos de parada dos coletivos. Uma diferenciação que faz o antes imutável respirar novas cores, mesmo artificiais.
As casas de campanha são distantes umas das outras, um panorama muito distinto das acumulações de moradores e empresas, empresas e moradores nos trechos mais ao norte. Ao norte do Rio Grande do Sul, ao sul de Santa Catarina ou ao norte de Santa Catarina. As casas de campanha em suas simplicidades, algumas muito antigas. Algumas imitam em menor tamanho o estilo da construção que se convencionou chamar de parque de Bento Gonçalves, que foi uma das residências do protagonista na Guerra Farroupilha. A famosa estrutura que pinta no horizonte está em área pertencente ao município de Cristal.
Casas simples. Muitas carentes de pintura. Armazéns, borracharias, mecânicas. Casas com suas janelas voltadas para rodovia. Intenso tráfego de carros que devem ouvir. Caso a duplicação chegue até ali, muitos serão indenizados e pedidos para se retirar, como já ocorreu em alguns trechos. Outros vão conviver com o som e o impacto dos pesados veículos, principalmente caminhões, mais próximos do lugar onde dormem, onde fazem as refeições, onde vivem. Complicações do que um dia foi uma vida muito mais pacata.
A violência na região aumentou estratosfericamente. Retratos de um Brasil desigual, desempregado e, quando empregado, mal empregado. Mal formado e mal formando na formação de estudantes, trabalhadores e cidadãos. Um país conivente com os tantos crimes, que acentua a metáfora das prisões das estradas e dos pontos de ônibus, nesse inferno de inevitáveis incertezas quanto ao próximo dia.
Uma estrada de maior volume de caminhões que as vozes mais experientes logo associam com a aproximação do porto de Rio Grande. À essa altura, a rodovia está mais reta do que as curvas anteriores nas proximidades de Barra do Ribeiro e Tapes. Camaquã é um brinco, mas somente um brinco. Como se um ponto luminoso na orelha, como é luminosa nas noites de rodovia, fosse resolver o problema de um organismo problemático. Camaquã deu alguns sinais de desenvolvimento. Mas não por muito tempo. Um prédio colossal posto à beira da rodovia, próximo da entrada da cidade, perdurou anos de contemplação sem que os viajantes soubessem seu destino final. Acabou lacrado nas vastas fachadas que estavam prontas. Faltou verba ou mudança radical de planos.
Não bastasse os problemas e bucolismos apresentados, o preço da gasolina é dos mais altos do país. Eis uma região que ficou para trás historicamente e talvez mais acentuadamente na contemporaneidade e que apresenta pedágios caros, valores de transporte público caros, como o caso de Pelotas, e preço de gasolina caro. Ao menos mais caro que norte do Rio Grande do Sul e o sul de Santa Catarina. Mais uma vez caminha-se ao encontro da metáfora do inferno. Um lugar de calor nos verões mais asfaltados e com menos saídas.
Uma das saídas, orgulho dos outdoors exibidos ao longo do trajeto, seja a praia em São Lourenço do Sul. Se Camaquã foi aqui posta como um mero brinco, talvez São Lourenço possa ser um oásis. Cidade pacata e que apresenta essas atrações turísticas, com boa gastronomia e opções para refrescar o verão em praias cada vez mais procuradas. Uma ameaça à eterna tranquilidade do inferno, mas uma possibilidade de renda e desenvolvimento com o turismo.
Os outdoors são uma das poucas formas de romper a paisagem incessantemente descrita. Além dos vastos pampas e campos intermináveis após o trecho mais cerrado em árvores, além das poucas casas de campanha. Além dos poucos armazéns, borracharias e mecânicas. Os outdoors contrastam o fato de que é muito mais fácil vê-los do que ver uma verdadeira empresa empregadora. Sinais de o desenvolvimento está distante como a propaganda e o marketing estão distantes da realidade. Cada nova mentira da publicidade é uma confissão de sua mentira anterior, destacaria nosso falecido francês, Guy Debord.
Entre ultrapassagens perigosas e novamente a sonolenta estrada de pampas aos arredores, os funcionários da empresa administradora da rodovia aparecem cada vez em menor número. Se concentram mais ao trecho próximo da região metropolitana de Porto Alegre, bem sabe-se o porquê. A segurança consiste em raros e esvaziados postos de Brigada Militar, entidade de tantas dificuldades financeiras, a exemplo do estado, além dos mais modelados e equipados santuários azuis e amarelos da Polícia Rodoviária Federal.
As opções de diversão são os chamados bailões. Alguns são fortemente anunciados nas pinturas, atrativos para buscar clientes, mesmo que de passagem. Outros são mais reservados, pelas opções ilegais que variam de jogos de azar à prostituição nas casas noturnas. Talvez grande parte das comunidades prefira os almoços e festas de igreja, os bingos de domingo e talvez seja um grande erro unir essas duas formas de diversão no mesmo parágrafo, mas agora foi.
Um dos prazeres da região se estende para gastronomia de cucas, salames, chimia, doces de Pelotas e agriculturas familiares, cada vez menos livres dos agrotóxicos. Plantações de eucaliptos que se enfileiram militarmente à espera de seus cortes e aproveitamentos para os produtos derivados que ocuparão as prateleiras dos supermercados, enquanto os moradores locais reclamam que esse tipo de plantio prejudica o solo pela eternidade de suas vidas. Infernos.
Pessoas que esperam. Esperam a chuva na horta. Esperam a chuva para amenizar o mormaço. Esperam um novo amor nessas cidades escassas. Esperam o cão ou o gato que fugiu, como costumavam fazer, mas demoraram uns dias a mais para voltar. Esperam o marido voltar com o jantar. Esperam a chefia da família voltar da ida à cidade. Esperam a correspondência e as contas a pagar. Esperam a música certa da bandinha alemã na rádio. Esperam clientela no pacato armazém de letreiro apagado pela poeira e o tempo. Pelo tempo e o vento. Esperam que a duplicação ocorra ou não ocorra. Melhorias para região ou malefícios para suas propriedades?
Pessoas que pedalam bicicletas tentando manter o ritmo entre o deslocamento do horário e o poupar o físico contra o forte calor de janeiro. Pessoas com largas abas em chapéus contra o poderoso sol do estado brasileiro mais castigado pelo buraco na camada de Ozônio, que alguns estudiosos dizem estar finalmente diminuindo. Assim como diminuindo, mais comprovadamente, está a natalidade do Rio Grande do Sul. Pessoas que esperam os ônibus nas paradas. Pessoas com o chimarrão na frente de suas pequenas casas. Pessoas saudosas de bailões fechados, de gente que já morreu. Pessoas saudosas dos filhos que buscaram os maiores centros e visitam cada vez menos nessa corrida vida. Pela dificuldade de liberação do trabalho ou pela falta de saco para encarar essa rodovia de mão única. De mão única com o diabo no inferno.
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