Gosto de variar os caminhos por onde ando pela cidade. Claro, dependo da disponibilidade de tempo e se estou caminhando a esmo ou com objetivos mais concretos, mas sempre que consigo, faço minhas rotas. Passar por pontos turísticos interessantes, por paredes com inscrições que me chamaram atenção, por locais onde vi alguma coisa legal em outra data, ou simplesmente descobrir novas possibilidades.
Por temporadas, por estações defino algumas rotas mais padrões, onde eu me sinta mais à vontade. Por exemplo, do meu bairro até a Avenida Bento Gonçalves, tenho escolhido a arborizada e movimentada com comércio, Gonçalves Chaves. Passei a gostar mais da rua e a maior movimentação de pequenos estabelecimentos dificulta os roubos a pedestres, então passa uma ligeira sensação de mais segurança em relação à paralela Padre Anchieta. Da Avenida Bento mais em direção ao Centro, ao coração da cidade, opto pela 15 de Novembro, passando pela minha antiga escola, o apartamento de um amigo, o local de trabalho da minha tia e alguns estabelecimentos que me conferem um ar comum, como barbearia, estúdio de dança, papelaria, estacionamentos, etc. Até desembocar na principal praça da cidade, com suas árvores centenárias, prédios antigos e pessoas das mais variadas, no encontro entre a periferia e o empresariado.
Contorno a praça e ouço um rapaz com o microfone recém ligado à frente de uma loja. Anuncia que se trata não de uma loja qualquer. Se trata da maior loja de créditos de Pelotas (exclamações)! Se trata de uma das maiores lojas de créditos do Rio Grande do Sul (mais exclamações)! Aposto que nem ele acredita nisso e provavelmente nem os donos, a não ser que tenham um ego desmedido e sem noção. Porém, creio que a extensão da importância da loja também seja uma estratégia para ele ganhar tempo e organizar a papelada das ofertas e chamativos que pretende anunciar a seguir. Mas como segui caminhando, não o ouvi anunciar mais.
Quem pode ter ainda ouvido ou não era um morador de rua, na soleira do fechado Teatro Sete de Abril, cerrado há vários sete de abris que se passaram nos calendários. Sem atrações internas, sua fachada fica decorada pela crueldade das ruas daqueles sem oportunidades ou definitivamente desmotivados a tentar qualquer emprego que seja, como ser locutor da suposta maior loja de créditos da cidade. Ele estava completamente coberto por um cobertor dos mais sujos que já presenciei. Imóvel, se estivesse morto, não descobririam nos próximos minutos, nem horas e provavelmente demoraria uns dias.
Na praça, contornei a funerária que apresenta cães vivos nos seus degraus de entrada. Definitivamente vivos. Se morrem, será um escândalo dali a instantes com o desespero dos antigos donos. Porém, se morrem, já estão em uma funerária e aposto que não teriam que pagar pelo funeral, pois fazem parte da herança do comércio dependente do findar de vidas. Não seria problema aos caninos. Não, definitivamente não seria.
Passo por um senhor apoiado a uma máquina dos parquímetros, provavelmente esperando o aparecer de um sinal celestial divino para fazer alguma, tomar um rumo ou ao menos cambiar de posição. Passei por ele, segui meus passos e o homem seguia apoiado ao parquímetro como quem se apoia nas laterais de uma cabine telefônica enquanto efetua uma ligação.
Encontrei um bom local na praça para ler. É um corredor que gosto bastante, onde poucas vezes fui interrompido. Uma ou outra vez, um velho senhor de rua sentou-se de frente ao banco que costumo escolher, demonstrando uma espécie de hábito ou demarcação de território. Respeitei-o, obviamente. Outras vezes como nesta que estou narrando, a proximidade com os brinquedos da praça aproximam as mais variadas crianças, que se divertem e fazem algazarra enquanto os pais sentam-se nos bancos próximos, que formam uma espécie de meia lua em formato.
Enquanto as crianças sobem e descem nos escorregadores e nos outros brinquedos que não sei precisar, mas saberia se eu fosse uns 13 anos mais jovem, os pais, geralmente mães, apenas observam e raramente chamam atenção. Seria bom que chamassem mais vezes, pois um nesta tarde me convocou a notar sua presença, pois emitia gritos guturais elevados. Fazia-me crer que tem potencial para ser um novo Chester Bennington se bem treinado. E aqui falamos em treinamento, pois tudo que conseguia por vezes era me irritar e quase fazer-me desistir da leitura. Fui fiel às linhas tecidas por Humberto Gessinger na finaleira do livro Mapas do Acaso. Nem pretendia fazer paralelo entre o título da obra e os acontecimentos banais e sequencias da cidade em que narro. Mas aparentemente se conectam, não? Mapas do Acaso e as experiências vistas por mim, por acaso ou por eu mesmo querer.
Li até ele começar a terminar o livro, com as letras das músicas que em suma maioria eu conheço. Uma ou outra exceção fez com que eu lesse com mais atenção para atentar a detalhes ou como se fosse a primeira vez. Fechei o livro nas páginas finais e segui viagem. Calcei novamente os fones de ouvido. Se por vezes penso que meus textos possam ser repetitivos, tenho a breve certeza de que as músicas tocadas nas rádios mais ouvidas são mais repetitivas.
Mas logo as músicas vão entrar em desuso e precisaremos baixar ou procurar por aplicativos como Spotify para termos acesso a elas. De certa maneira, as rotas que traço entre a Gonçalves Chaves e a Quinze de Novembro hoje podem me parecer repetitivas. Fica-me a pulga atrás na orelha, essa necessária pulga que, não obstante, intromete-se ao chamado pé do ouvido. Ela me questiona: "Até quando?"
15/08/2017
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